“UM CONTRATEMPO” – Entre mistério e justiça
Um bom mistério tem o poder de prender a atenção do público, que é convidado a juntar as peças do quebra-cabeças. O desenvolvimento das tramas pode seguir por caminhos difíceis de acompanhar. Muitas vezes, intencionalmente, as pistas são mostradas apenas como passagens em um labirinto de sentidos. UM CONTRATEMPO traz em sua rede de possibilidades um convite à investigação, aos detalhes e, claro, à justiça.
Tudo está indo muito bem para o empresário Adrián Doria até que ele acorda em um quarto de hotel depois de sofrer um golpe na cabeça. Ao caminhar até o banheiro, encontra sua amante morta, coberta por muitas cédulas de dinheiro. Os policiais chegam e Adrián é preso e acusado de assassinato. O quarto estava trancado por dentro e não havia maneira de entrar ou sair. Doria contrata a advogada Virginia Goodman, com quem tenta juntar todas as peças da história antes de se apresentar ao júri.
O mistério inquietante e o constante estímulo à dúvida fazem com que o longa estabeleça uma atmosfera própria em poucos minutos. Trata-se de uma obra inspirada em diversos de seus antecessores, mas, ainda assim, tem seus aspectos marcantes. A primeira discussão que levanta é sobre responsabilidade. Então, expõe de forma exemplar a criação de relatos alternativos diante de um crime e a fronteira entre arrependimento e arrogância. Esses grandes temas são abordados durante todo longa, entremeados por questões como o poder do dinheiro na manipulação da justiça.
Quando estabelece sua premissa, “Um contratempo” mostra, também, o efeito dominó das situações narradas pelo protagonista. O filme se aproxima do público ao demonstrar a cascata de decisões equivocadas do personagem. Aos poucos, percebemos como um erro pode se conectar com outro e, em minutos, ficarmos presos entre escolhas e consequências. Essa identificação, associada ao ritmo intenso da narrativa, envolve o espectador, que pode criar expectativas, teorias e até mesmo julgamentos, no decorrer das inúmeras mudanças de caminho da estória.
A atmosfera e a intensidade mostram a capacidade manipulativa do diretor e roteirista Oriol Paulo. Ele compôs o filme com diferentes possibilidades narrativas para chegar a uma verdade. Para isso, misturou apelos às convenções de gênero com alguma experimentação visual. Há elementos evidentes de “Um corpo que cai” (1958) e de “As duas faces de um crime” (1996). No entanto, o espanhol traz uma estrutura mais textual do que a construção imagética proposta por Hitchcock; e uma advogada menos ingênua do que aquele interpretado por Richard Gere.
“Um contratempo” foi feito com tamanha fidelidade ao texto que, em certos momentos, caiu na armadilha dos diálogos expositivos. Diante do que propunha, esse era o maior perigo para a qualidade do filme. Ele poderia ficar preso nos diálogos; e ficou. Afinal, havia um confronto de diferentes versões dos fatos. Por isso, precisava utilizar o recurso da narração, direta e indireta, para que fosse possível envolver o público com as cenas apresentadas e com os relatos contraditórios do personagem. No entanto, acabou mostrando um excesso de explicações para cada relato, sempre sucedendo uma cena complexa com a sua simplificação.
O centro do filme é o conflito de poder entre as narrativas de Adrián, interpretado por Mario Casas, e a advogada Virginia Goodman – interpretada por Ana Wagener. Casas foi intenso, com boa presença em cena e oscilações controladas entre raiva, arrogância e preocupação. Já Wagener foi quem ditou o tom das interações. Com uma personagem controladora, soube manter a força da advogada, enquanto entregava traços sutis de envolvimento emocional com a fala do protagonista.
Além das excelentes atuações, o filme também contou com fotografia e trilha sonora bem trabalhadas. Os aspectos visuais foram aqueles que melhor demonstraram a identidade de Oriol Paulo. Ele e o diretor de fotografia Xavi Jiménez experimentaram diferentes ângulos, movimentos de câmera com variação de velocidade e o aumento de intensidade das cores no decorrer do longa.
A frieza das paletas de cores, com destaque para tons azulados, foi marcante. Além disso, tons esverdeados e amarelados também foram utilizados com intencionalidade. O verde nos cenários marca a perda de controle dos personagens e o amarelo demonstra a intensidade emocional da presença dos pais que perderam seu filho. A trilha sonora, por outro lado, ficou dividida: a boa criação musical com instrumentos de cordas graves contribuiu com o clima das cenas; já a ambientação poderia ter sido mais orgânica.
No mistério que propôs, foi absoluto em atrair o envolvimento do espectador. As discussões que levantou ficaram apenas no enunciado, o que não diminui a qualidade da obra. Em relação à originalidade, poderia ter ido além se utilizasse experimentações também no enredo. O filme pode dividir as experiências do público em dois grandes blocos. Aqueles que não aceitam as simplificações deixam de apreciar a boa criação visual. Já aqueles que mergulham no longa precisam estar com o coração bem preparado. Afinal, ele atingiu seu objetivo de compor uma atmosfera intensa em que, apesar dos contratempos e com certo otimismo, pode existir o enlace do mistério com a justiça.
Redator especialista em comportamento que busca no Cinema os diversos sentidos da vida.