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“UM FILME DRAMÁTICO” – Novos olhares em potencial [9º ODC]

Na abertura de UM FILME DRAMÁTICO, vemos algumas estrelas no céu. Logo depois, elas são substituídas pelos nomes dos envolvidos na produção. Com essas sequências, o diretor Eric Baudelaire começa a demonstrar que os astros de seu projeto são, simultaneamente personagens e realizadores, de um subúrbio parisiense. Afinal, em uma cena adiante, ouvimos um diálogo sobre a capacidade de o cinema ser uma arte que pode abordar qualquer tema.

Ao longo de quatro anos trabalhando com uma comissão de alunos do Ensino Médio, o cineasta estabelece uma proximidade sensível com uma turma do Collège Dora Maar em Saint-Dennis. Crianças e adolescentes passam a usar câmeras para debater formas possíveis de representar o mundo ao redor. Como muitos deles vêm de famílias estrangeiras, o retrato de Paris adquire olhares e sensibilidades variadas fora das subjetividades já tão conhecidas de artistas estabelecidos.

Gradualmente, Eric Baudelaire nos apresenta aos estudantes a serem acompanhados. Cada um deles entende à sua própria maneira o trabalho de filmar seu cotidiano e revelar um pouco de suas personalidade, proporcionando assim momentos individuais bastante específicos: há aqueles que conduzem o empreendimento como um vlog, registrando cenas em que tocam piano, tomam café da manhã ou caminham pelas ruas; e também há outros que se expressam de modo crítico em relação aos problemas de xenofobia e desigualdades sociais na França (por exemplo, no caso do menino negro que discorre sobre a realidade da periferia). Independentemente do uso que cada jovem possa dar ao equipamento que maneja, o documentário não hierarquiza os registros feitos porque assume um tom observacional diante do que atrai aqueles alunos com poucas interferências.

Mesmo que existam trechos expressivos desses estudantes construídos individualmente, o grande valor da produção se manifesta através de operações coletivas. Em rodas de conversas. professores lançam discussões profundas sobre terrorismo e racismo, que são desenvolvidas com igual densidade pelos garotas e garotas – entre eles, surgem explicações coerentes acerca da islamofobia no país e debates referentes às origens nacionais de um indivíduo. Além disso, a união desses jovens pelo projeto também rende uma sequência poderosa em que eles intervêm sobre os cartazes de candidatos às eleições, colocando-se como concorrentes com propostas mais verossímeis – uma atitude que reverbera na inesperada crítica feita por um dos meninos à política de extrema direita de Marine Le Pen.

A cooperação entre os “personagens” marca suas potencialidades também a partir da forma como filmam suas rotinas, sendo sujeitos participantes das narrativas que pretendem contar. Por vezes, estão filmando os corredores da escola e aparecem portando a câmera e decidindo como fazer esse registro; em outras passagens, posicionam o equipamento como desejam e se comunicam olhando diretamente para nós; e ainda há momentos em que somos colocados no ponto de vista da câmera e enxergamos a construção dos planos através da sensibilidade dos jovens. É importante que Eric Baudelaire ofereça espaço para distintas decupagens, todas elas capazes de conferir dinâmica à narrativa e percepção de que cada voz possui seu estilo.

Como aquelas crianças e adolescentes estão descobrindo suas formas de expressão do mundo pelo cinema, é natural que haja um processo pedagógico de aprendizagem das técnicas cinematográficas. Isso acontece quando os novos “diretores” experimentam outras possibilidades de filmagem desconhecidas por eles ou aprofundam suas práticas em relação aos recursos formais: por exemplo, fazem experimentações com o zoom para observar os efeitos da aproximação e do afastamento das lentes; e refletem sobre os efeitos sonoros na composição das imagens, como se nota no momento em que jogam frescobol na praia e inserem ruídos metálicos que simulam o contato da bola na raquete. É um aprendizado sempre ligado à metalinguagem de pensar e conhecer o fazer cinematográfico, como se evidencia nos diálogos em que se perguntam sobre as características do documentário e os elementos essenciais dos filmes em geral.

Embora muitas experimentações produzam um impacto considerável para a percepção das visões daqueles estudantes, nem todas se concretizam efetivamente como poderiam. Em especial, são dois aspectos que frustram a sensação até então corrente de que os registros seriam espontâneos: alguns planos gerais percorrem a cidade parecendo meticulosamente calculados e pouco conectados com estímulos que atraíssem os alunos; e a condução da narrativa não define um roteiro fechado nem um recorte cronológico exato, o que proporciona na espontaneidade, mas dificulta o engajamento com alguns “personagens”. Assim, perde-se o efeito de trajetória para eles enquanto a identificação não é construída com todos.

Um filme dramático” não poderia carregar demasiadamente nas intervenções estéticas de seu documentarista, se não o objetivo de fornecer espaço para a condução das crianças e adolescentes se perderia. Porém, deixar o documentário completamente entregue ao improviso e ao imprevisível faz com que alguns segmentos estabeleçam um vínculo emocional maior com os espectadores – na prática, então, alguns jovens se tornam mais expressivos do que outros em relação a visões artísticas e leituras de mundo. Por mais que isso possa afetar o resultado final, é uma experiência condizente com a ideia de trabalho compartilhado que se divide centre um cineasta formado e jovens em formação para a vida e para a arte.     

* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).