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“UM HOMEM” – Algumas identidades [24 F.Rio]

Escrever uma sinopse pode ser um trabalho espinhoso. Como apresentar um resumo da história de um filme sem revelar aspectos relevantes que precisam ser descobertos durante a experiência espectatorial? Em compensação, escrever uma sinopse pode ser uma tarefa poderosa. Imagine o quanto pode ser proveitoso fazer um resumo que atrai o interesse do público sem entregar informações em excesso? A sinopse de UM HOMEM reconhece as potencialidades desse trabalho e oferece um resumo que indica a premissa sem expor as transformações pelas quais o filme passa. A principal mudança é partir da busca pelo esclarecimento de uma identidade para descobrir que os indivíduos têm múltiplas identidades.

(© The Match Factory / Divulgação)

A proposta inicial que precisa ser conhecida é a seguinte: há um mistério a ser solucionado que gira em torno de um homem que não tem o nome que alegava ter. Rie é uma mulher sofrida que teve um divórcio complicado, o falecimento do pai e a perda precoce de um filho. A vida dela parecia tomar outro rumo quando se relaciona e se casa com Daisuke. Alguns anos depois, seu novo marido morre em um acidente. Nas cerimônias do velório, descobre-se que o falecido não se chamava Daisuke e que havia se apoderado da identidade de outra pessoa. Então, Rie procura o advogado Akira e pede que investigue quem era, de fato, o homem com quem esteve casada.

Seria natural esperar que a obra concentrasse a questão das alterações das identidades na dimensão do roteiro. Porém, o diretor Kei Ishikawa vai além e incorpora este elemento na abordagem geral da narrativa. No primeiro ato, a dinâmica entre Rie e o suposto Daisuke não se enquadra em algum gênero específico, pois trata da aproximação gradual entre uma mulher em recuperação de suas perdas e um homem misterioso e tímido que havia chegado há pouco na cidade. Após a descoberta do falseamento do nome do falecido, o thriller se impõe como um gênero predominante ao acompanhar as reviravoltas da investigação de Akira em busca do passado de tão enigmático sujeito. Existe ainda a presença do melodrama nas sequências em que Rie lida com os sentimentos conflitantes de estar em luto por alguém que ama sem conhecer totalmente, ao mesmo tempo que precisa cuidar emocionalmente dos filhos. Assim, a própria produção sugere ter mais de uma identidade.

Do mesmo modo que os gêneros se alternam, os pontos de vista da narrativa se alternam. Inicialmente, Rie é a protagonista dos acontecimentos que giram em torno de seu trabalho na papelaria, nos cuidados de uma mãe em sofrimento e na educação dos filhos até conhecer seu futuro marido. Nas sequências em que seu segundo casamento ganha destaque, ela divide o protagonismo com o falso Daisuke. Após a morte do homem, a perspectiva principal começa lentamente a se desviar para Akira e sua investigação para compreender da trajetória do senhor X (como passa a ser chamado o então Daisuke), buscando pistas com suas fotografias, desenhos e entrevistas com presos que poderiam conhecê-lo. À medida que as primeiras revelações vêm à tona, ocorre outra leve alteração na figura do protagonista e o senhor X assume uma posição de maior relevância através de alguns flashbacks inseridos para detalhar sua vida. Por vezes, os três núcleos se sucedem para sugerir que também o próprio filme pode apresentar alterações em sua identidade.

Por sinal, as individualidades de cada personagem também estão sujeitas às transformações a depender do contexto. Cada um deles passa por um arco dramático que envolve mais ou menos variações naquilo que pode identificá-lo. Rie e seu filho se deparam com o conflito de precisarem constantemente mudar o sobrenome em razão de eventos inesperados com os homens da família; Akira tem origem sul-coreana e sofre preconceito por isso apesar de já ter conseguido a cidadania japonesa; um detento interrogado por Akira foi preso por vender falsas identidades para quem o procurasse; e a amiga do verdadeiro e desaparecido Daisuke cria um perfil falso de rede social para tentar encontrá-lo. Entrando mais a fundo no mistério a ser solucionado, o advogado descobre que a troca de identidades pode ser mais complexa do que julgava a princípio e envolver mais de uma operação. Nas trajetórias do senhor X e de Daisuke, a própria mudança de identificação pode ser mudada para algo diferente em função de um passado que os persegue e cobra um preço muito alto.

Como se trata de um filme que fala sobre a fluidez das identidades, o elenco incorpora essa ideia na composição dos principais personagens. O trio central é desafiado a dar novas características a Rie, Akira e X à medida que a trama se desenrola e revela traços até então desconhecidos de suas vidas. Sakura Ando pode, aparentemente, perder importância na história, mas apenas se a análise for apressada, pois ela confere cada vez mais nuances dramáticas a uma mulher que internaliza seus conflitos para ser um porto seguro para a mãe e para os filhos. Satoshi Tsumabuku cria um advogado que precisa repensar seus valores acerca da falsificação de identidades, ponderando a partir do exemplo de X que pode ser uma estratégia de sobrevivência em alguns casos. E Masataka Kubota atravessa a maior transformação por ter que compor uma figura, inicialmente, tímida e enigmática, que se revela moldada por um trauma que o persegue em diversas situações por mais que tente refazer sua vida. Tais performances são muito ajudadas pelo trabalho de Kei Ishikawa, já que o cineasta explora alguns recursos visuais para complementar a caracterização e os arcos dos personagens.

O principal elemento que agrega ao desenvolvimento narrativo é o design de produção, marcado constantemente por superfícies reflexivas que projetam expressivamente os rostos dos personagens. Pode ser a tela de uma televisão, o espelho de um cômodo ou o vidro de uma sala de visitas na prisão. Qualquer uma dessas superfícies evidencia que a projeção de um rosto não é uma equivalência perfeita da face natural do indivíduo, mas, na verdade, um reflexo imperfeito revelador de facetas diversas nem sempre evidentes na sociedade. É o que ocorre, por exemplo, nas sequências em que Akira conversa com um detento e seus rostos se projetam do lado oposto ao que cada um está no vidro que os separam; e nos momentos em que X observa a própria face na janela de um carro e no espelho da casa de uma jovem com quem se relaciona. Estas últimas utilizações também trazem um aspecto a mais no arco narrativo do personagem, já que as imagens refletidas parecem simbolizar lembranças de um passado que ainda o persegue.

Em pouco menos de duas horas, a descoberta do mistério é feita para os espectadores e para os demais personagens. A partir daí, Akira, Rie e as outras figuras diretamente afetadas podem buscar novos rumos de suas vidas tendo em mente alguns aprendizados que fizeram pelo caminho. Pode parecer incoerente que as últimas cenas se concentrem especialmente no aprendizado do advogado, mas se trata de uma impressão momentânea. Ao perceber que mudar de identidade não seria necessariamente um crime a ser punido com o rigor da lei, ele passa a relativizar certas questões para as quais não atentava antes. Dentre elas, o fato de que assumir outra identidade poderia ser um processo forçado, doloroso e escapista do qual muitas pessoas estariam sujeitas, inclusive ele mesmo. Sendo assim, os últimos minutos de “Um homem” traduzem com uma riqueza visual tremenda o que pretendia dizer, brincando com o artigo indefinido no singular de seu título e enfatizando o significado de um homem na frente de um quadro que mostra dois outros homens em profundidades de campo diferentes.

*Filme assistido durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).