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“UM LUGAR SECRETO” – Rito de passagem transgressor

Sociedades de diferentes culturas e períodos possuem sempre seus próprios ritos de passagem, isto é, celebrações ou acontecimentos que marcam momentos importantes na vida das pessoas. Podem ser eventos naturalizados como prosaicos em muitos países ocidentais, como festas e mudanças de status sociais, ou ainda considerados ritualísticos por ocorrerem em povos com tradições distintas das nossas, como os rituais religiosos de comunidades fora do mundo ocidental. Uma das fases da vida que mais possui ritos de passagem é a passagem da adolescência para a vida adulta, algo já muito abordado pelo cinema de formas mais ou menos tradicionais. Como mais um exemplo não convencional de representação do fim da adolescência, UM LUGAR SECRETO se afasta das versões mais comuns para esse tipo de história.

Quem passa pelo processo de transição para uma nova etapa de vida é John, um menino de 13 anos. Ao explorar os bosques próximos a sua casa, descobre um bunker inacabado. Aparentemente, sem maiores razões, ele droga os pais e a irmã mais velha e os arrasta para o buraco no fundo do solo. Enquanto seus familiares ficam presos sem possibilidade de fuga, o garoto tem a casa apenas para si e a oportunidade de desfrutar de maior liberdade.

(© Synapse Distribution / Divulgação)

Em geral, o cinema pode tratar os ritos de passagem como histórias de coming of age mais leves que misturam comédia e drama ou tramas mais carregas que combinam suspense e drama. A segunda abordagem é observada, por exemplo, em “Dente canino” e “Os irmãos lobo“, obras que enfocam famílias disfuncionais e os motivos para os adolescentes tentarem se “libertar” do seio familiar (sendo, respectivamente, o rigor exagerado que desemboca na violência e o senso de proteção que se distorce para um controle excessivo). Conhecendo o conflito central da trama, os espectadores podem ser impulsionados a buscar explicações para o comportamento de John através da análise de cada detalhe do primeiro ato. Assim, a ideia seria compor um quadro mais amplo da família: Brad e Anna são um casal comum e poucas informações são dadas sobre eles, apenas o afeto e o cuidado que transmitem na mesa de refeições; Laurie gosta de literatura e está em um relacionamento com um rapaz chamado Josh; e John gosta muito de jogar tênis, seja o esporte na quadra, seja um jogo de videogame, e tem uma personalidade exploradora por caminhar pelos bosques ou operar um drone sobre a vegetação local.

Os motivos que levaram John a aprisionar os pais e a irmã no bunker não ficam tão claros a princípio. A dinâmica familiar não contém violência, maus tratos, abandono ou outro problema emocional, o que torna ainda mais enigmático o comportamento do protagonista. Se as origens são nebulosas, os desdobramentos dessa ação são mais nítidos e alvo do interesse do diretor Pascual Sisto. O cineasta está mais preocupado em trabalhar o bunker como uma metáfora do envelhecimento pretendido pelo garoto, já que o aprisionamento da família pode ser compreendido como um rompimento radical e simbólico. Isso se relaciona com o fato de que os ritos de passagem para a vida adulta costumam significar a saída de um ambiente familiar restritivo em direção ao pertencimento a uma coletividade social mais ampla. Nesse sentido, antropólogos como Arnold van Gennep e Victor Turner estudaram rituais dessa natureza e concluíram que tanto homens quanto mulheres de povos antigos já passavam por atividades capazes de mostrar seu potencial produtor para a comunidade.

Dentro do bunker, Anna, Brad e Laurie se questionam sobre o porquê de John agir como agiu. A partir daí, uma chave de leitura surge: a mãe se lembra de uma ocasião em que o filho perguntou como era ser adulto. Este recurso do roteiro escrito por Nicolás Giacobone pode não ser tão sutil para caracterizar possíveis objetivos do menino, mas se combina com duas construções mais elaboradas. Anteriormente, já havia sido possível notar a curiosidade de um personagem que desbrava os bosques da região e faz inúmeras perguntas ao jardineiro sobre seu trabalho e a sua irmã sobre os motivos de não poder fazer barulho em certo dia. Sob a ideia de tentar viver como um adulto, John cria condições para ter mais liberdade e, assim, passar horas e dias jogando tênis, brincando com o videogame, dirigindo o carro do pai, comendo pizza e hambúrguer, nadando, sacando o dinheiro da família e se divertindo com o melhor amigo. Então, essas atitudes sugerem que o menino acha que ser adulto é poder fazer o que quisesse quando quisesse.

Ao invés de tornar a fala de Anna simbólica de como é a narrativa, Pascual Sisto constrói apenas um momento pontualmente didático em meio a tantos outros marcados pelos silêncios, lacunas e pelas ambiguidades. A narrativa se desenvolve de maneira lenta e sem grandes rompantes emocionais, especialmente por conta da postura de John jamais especificar para si mesmo ou para os familiares quais seriam suas intenções. Além de a personalidade do protagonista moldar o tom da produção, a sensação de aprisionamento está presente na construção visual, por exemplo com uma razão de aspecto menor no formato de um quadrado e com enquadramentos sob a forma de molduras opressoras do espaço construídos em torno de janelas e de fachos de luz entrecortados pela escuridão. Por outro lado, o cineasta não explora com tanta força a dimensão de terror existente no enclausuramento de Anna, Brad e Laurie porque os tormentos físicos e psicológicos que poderiam preencher as atuações de Jennifer Ehle, Michael C. Hall e Taissa Farmiga recebem pouco destaque.

Se a abordagem de thriller psicológico não contempla integralmente o que a mãe, o pai e a irmã passam sem água, alimento e um abrigo adequado, a comédia dramática acompanhada de estudo de personagem em torno de John funciona. Charlie Shotwell interpreta o jovem dentro das contradições entre querer ser adulto, manter uma alma infantil, lidar com as exigências da vida adulta e agir de modo questionável para preservar seus planos. Cada uma dessas facetas revela as mentiras que conta para evitar a chegada de pessoas de fora, as tentativas de administrar as necessidades da casa e da família, as atitudes de uma criança sem limites e a falta de percepção do perigo que seus familiares correm. Como em nossa sociedade a entrada na vida adulta acontece gradualmente através do casamento, paternidade/maternidade ou primeiro emprego, John se depara com dificuldades relacionadas à independência financeira, à própria saúde e às preocupações de outras pessoas e precisa repensar as escolhas feitas.

Como Anna responde à pergunta de seu filho, ser adulto é ter responsabilidades e ainda assim conservar sentimentos juvenis dentro de si. Apesar de a resposta não agradar John, esta ideia parece sintetizar o caminho seguido por “Um lugar secreto” para lidar com a história de um menino que aprisiona os pais e a irmã em um buraco. Há traços de fábula na proposta e no desenvolvimento, algo como um conto a ser narrado pelos pais para uma criança ao dormir para passar mensagens sobre amadurecimento, família e futuro. A sensação cresce por conta da subtrama envolvendo uma mãe e sua filha, embora seja um arco que aparece ao longo de poucos minutos e tenha uma relação mais frágil com a trama central. Por isso, o mérito do filme não está em tentar criar uma visão fabular, mas dar outra roupagem às histórias de rito de passagem para adolescentes a partir do rompimento simbólico com uma família comum e sem razões tão grandiosas. Ao fim e ao cabo, não são necessárias razões complexas ou rocambolescas, basta apenas a sequência da vida.