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“UMA NOITE EM MIAMI” – Quatro titãs e uma iniciante

Cassius Clay, também conhecido hoje como Muhammad Ali, eleito como “o desportista do século XX” pela Sports Illustrated. Jim Brown, eleito pelo The Sporting News como o melhor jogador de futebol americano de todos os tempos. Malcolm X, fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana. Sam Cooke, chamado de nada menos do que “rei do soul”. Uma reunião entre os quatro teria tudo para ser épica. UMA NOITE EM MIAMI não consegue criar uma atmosfera grandiosa para tal encontro, o que não significa, contudo, que se trata de um filme ruim.

Adotando Clay (que ainda não havia adotado, no tempo em que o filme se passa, seu novo nome) como personagem central, o longa exibe o início da sua amizade com os outros três, tendo Malcolm X como um mentor. Em 1964, há relatos de que a reunião do quarteto realmente ocorreu; o que o filme faz é costurar uma discussão entre eles sobre o seu papel nos direitos civis dos afro-americanos.

(© Amazon Studios / Divulgação)

Trata-se do primeiro trabalho de Regina King na direção. A partir dessa ótica, seu desempenho é formidável, principalmente porque o que ela faz não é um teatro filmado (o que é extremamente comum em adaptação de uma peça teatral, como no caso). Ela não apenas cria um contexto prévio ao encontro, isolando suas quatro personagens antes de juntá-las, como – e isto é fundamental – obedece à regra conhecida como show, don’t tell. Quando Malcolm X menciona um show de Cooke em Boston, ao invés de colocar o primeiro simplesmente narrando o evento, King ilustra o fato por um flashback, do que resulta uma cena muito mais impactante.

Entretanto, King não faz mais que uma direção boa, uma das razões pelas quais “Uma noite em Miami” não é um filme inesquecível. Visualmente, no máximo existem algumas virtudes no figurino, unindo os esportistas (Clay e Brown) através do amarelo (enaltecendo que são campeões) e afastando os outros dois pelas suas personalidades – Cooke veste um terno roxo, o que combina com seu jeito muito menos discreto que o de Malcolm, trajado de forma bem mais tradicional.

No som, existe um diálogo com o roteiro, porém isso é fácil de ser feito em razão de um cantor ser uma das personagens principais. Com “Tammy”, Cooke surge sendo recebido com frieza no Copacabana, onde o público, mais maduro e cem por cento branco, prefere a versão pop de Debbie Reynolds ao seu soul. Com “A change is gonna come”, a potência da canção, no momento certo e com a ótima atuação de Leslie Odom Jr. (seu swing na linguagem corporal é fabuloso!), tem efeito forte no público. Todavia, as duas canções são ilustradas com Cooke cantando-as, o que não ocorre com os dois outros destaques, “Blowin’ in the wind” (Bob Dylan) e “Howl for me daddy” (Terence Blanchard, Keb’Mo’ & Tarriona Tank Ball). No primeiro caso, a participação da música é com escopo narrativo; no segundo, cria-se um cenário (em sentido amplo) para apresentar Jim Brown.

Vivido por Aldis Hodge, Brown é o renegado do roteiro, reduzido ao aspirante a ator que compreende as dificuldades de ser negro em Hollywood, e que provavelmente por isso mesmo se sente envergonhado perante os amigos. O script de Kemp Powers é muito bom, porém o jogador da NFL poderia ter sido excluído do texto, sem prejuízo narrativo. O caso de Clay, contudo, é o inverso. Eli Goree aproveita o jeito brincalhão e infantil do pugilista (um “bebê gigante”, nas palavras de Brown) para torná-lo a personagem mais carismática. Entre pulos na cama e enfrentamento ao empresário (que não quer que ele se relacione com Malcolm), Clay é um narcisista (elogiando a própria beleza diversas vezes) inseguro (perguntando para o segurança como é ser muçulmano), reflexo da sua juventude (vinte e dois anos) quando comparado aos demais.

O que o filme tem de melhor reside em dois eixos. O primeiro, relacional, contrapõe o experiente Malcolm X (interpretado com consistência por Kingsley Ben-Adir) ao iniciante (ao menos em matéria de direitos civis) Clay, de um lado, e o primeiro a Cooke, de outro. Enquanto a interação entre Malcolm e Clay é instrutiva (como se este fosse aluno daquele), a que ele tem com Cooke é quase adversativa. É com eles que o segundo eixo ganha robustez, consistente no debate sobre enfrentamento ao racismo. Enquanto o ativista muçulmano é feroz e quer dos amigos uma explicitude para defender a causa, o cantor defende que existem maneiras indiretas – econômicas, principalmente – para se combater o racismo estrutural.

Ainda que Malcolm e Cooke reconheçam igualmente o problema, a forma de se opor a ele, se combativa e imediata ou pacífica e mediata, é diametralmente oposta. O filme é claro ao apontar uma preferência de abordagem em seu encerramento, porém não tem faz jus à grandiosidade dos quatro nomes envolvidos. É natural esperar-se mais de uma produção que envolve titãs da movimentação sociocultural dos anos 1960. Mas querer algo maior seria exigir demais para uma diretora de primeira viagem, burocrática, ainda que promissora.