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“UMA VOZ CONTRA O PODER” – Indivíduo x instituição

Existem dois filmes que correm paralelamente em UMA VOZ CONTRA O PODER. O primeiro remete a títulos como “Erin Brockovich” e “O preço da verdade” ao compartilhar com eles a trama da luta de um indivíduo contra os crimes ou as injustiças cometidas por grandes empresas, seguindo os moldes bíblicos de Davi x Golias. O segundo leva a jornada individual(ista) de seu protagonista a cenários sociais mais complexos para além de sua realidade comum em uma fazenda no Canadá, que o desestabilizam e o obrigam a reformular suas certezas. O problema é que apenas um deles tem substância para fortalecer a narrativa da busca pelo direito individual em contraposição aos interesses das grandes corporações.

(© Synapse Distribution / Divulgação)

Percy Schmeiser é um agricultor de canola que vive com sua esposa Louise em uma propriedade rural canadense. O idoso mantém a longa tradição familiar de viver da agricultura e de armazenar suas sementes a partir das plantas mais resistentes com o objetivo de garantir as colheitas futuras. A vida seguia seu curso cotidiano até o momento em que ele recebe uma intimação judicial que diz que estava utilizando sementes transgênicas da empresa Monsanto sem licença. A partir daí, inicia-se uma longa batalha judicial na qual Percy tenta provar que não cometeu nenhum crime, ao mesmo tempo que os interesses de agricultores desprivilegiados vêm à tona graças a esse caso.

Os primeiros passos da obra não são tão diferentes daquilo que já se viu em histórias semelhantes, inclusive o fato de se inspirarem em eventos reais. Inicialmente, a rotina do protagonista é mostrada com planos aéreos ou gerais da fazenda e dos aparelhos em funcionamento; em seguida, o incidente incitante é colocado pelo roteiro através do envio da intimação judicial e as reações da família Schmeiser se alternam entre a surpresa e a confusão; posteriormente, as movimentações nas primeiras instâncias jurídicas são apresentadas com a contratação do advogado de defesa Jackson Weaver e as vitórias iniciais da empresa; por consequência, os primeiros desdobramentos do caso são vistos com as interferências de agentes da Monsanto rondando a área de Percy e dos vizinhos e com os prejuízos para a imagem pública do fazendeiro e de sua família (ele é acusado de ladrão pelos colegas e Louise é afastada de seus trabalhos comunitários). Entretanto, Clark Johnson parece criar todos esses momentos dentro de uma superficialidade protocolar sem jamais se aprofundar nos conflitos dramáticos da trama, explorar as potencialidades visuais daqueles cenários ou desenvolver momentos específicos e expressivos.

Logo, a presença opressiva da corporação custa a ser plenamente sentida por falta de sequências mais duradouras nesse sentido. A mesma sensação recobre as filmagens nos tribunais, excessivamente contidas sem chegar a algum instante de intensidade dramática relevante. Em comum, todas essas cenas parecem ser concluídas ou interrompidas burocraticamente sem atingir o efeito que poderiam ter se a decupagem valorizasse a construção narrativa. De maneira semelhante, o elenco não tem possibilidades de fazer o componente dramático se sobressair nos primeiros atos: o advogado Rick Aarons se torna a cara da Monsanto, mas Martin Donovan não cria um vilão nem um profissional cumpridor das suas funções, apenas um elemento obrigatório apático; o advogado de defesa Jackson Weaver mal possui um arco próprio, fazendo Zach Braff trabalhar com poucos recursos para criar um jovem profissional tentando provar seu valor; e Percy inicialmente não parece estar em um confronto com uma grande instituição por não escalonar suas emoções e descontentamentos como o texto sugere, algo evidenciado pela atuação tão contida de Christopher Walken até quando se espera uma explosão do personagem.

Com o avanço da disputa judicial entre as duas partes, fica patente o quanto Percy e a família têm a perder. Além da imagem perante à sociedade, eles também colocam em risco seus bens em uma série de julgamentos potencialmente desfavoráveis e custosos – recorrer e apelar para instâncias cada vez mais superiores fazem os gastos com honorários e com eventuais punições crescerem exponencialmente. Por isso, a entrada em cena da jornalista Rebecca Salcau é uma virada e tanto no curso dos acontecimentos, pois ela propõe ao agricultor expor sua situação na imprensa e obter apoio popular. A partir daí, não são apenas os direitos do idoso que estão em jogo, o que fica evidente na disposição da jornalista de tomar o caso das sementes como estratégia de sua revista para barrar a introdução do trigo geneticamente modificado pela mesma empresa. Desse modo, o trabalho da personagem criada por Christina Ricci é decisivo para levar Percy em direção a caminhos por onde ele sequer imaginou passar, como falar com a imprensa, participar de eventos públicos e receber doações de outros fazendeiros pelo mundo.

A jornalista é responsável por levar o protagonista para uma realidade na qual não estava preparado para estar: um cenário social que abrange outras pessoas e outras questões problemáticas, para além da sua situação individual. Como Louise fala em dado momento, Percy não gosta de notoriedade e acha que até sair para tirar uma foto 3×4 seria algo de grande repercussão social. Então, trata-se de um grande desafio para o homem falar com a imprensa, palestrar para plateias, esperar doações de pessoas de condição financeira também delicada e viajar para a Índia para partilhar suas experiências com outros fazendeiros. Nesse ponto, a narrativa cresce ao mostrar como o personagem fica desorientado em ambientes que ultrapassam sua compreensão e possibilidade de ação, sobretudo quando lê as diversas cartas de apoio de outros agricultores narrando suas dificuldades e quando é questionado na palestra na Índia sobre a fome no continente africano. A partir dessa guinada para outras perspectivas, a atuação mais contida de Christopher Walken encontra um sentido de ser ao evidenciar alguém que se considerava simplesmente um fazendeiro ser alçado inesperadamente ao lugar de um herói preocupado com seus semelhantes.

Uma mudança então atinge Percy Schmeiser a ponto de reorientar sua leitura dos acontecimentos e os significados da luta travada nos tribunais. A cada novo posicionamento diante da imprensa ou de outras pessoas, ele começa a falar mais frequentemente de como seu caso não é único e se assemelha a outros tantos que não puderam buscar resoluções melhores e tiveram que aceitar acordos insuficientes. Além disso, continua insistindo em apelações e recursos até onde puder porque vê seu esforço como um gesto que contemplaria outros agricultores desprivilegiados contra grandes corporações sem rosto e interessadas apenas em lucros. Apesar de a alteração no desenvolvimento do personagem não ser acompanhada por transformações na construção geral da mise-en-scène – isso porque a construção visual e/ou narrativa ainda mantém uma austeridade que limita a dramaturgia e o clímax emocional -, a contraposição entre indivíduo e instituições ganha contornos mais complexos para incluir uma conjuntura socioeconômica desigual, o capitalismo, a imprensa, o meio ambiente e as futuras gerações.

Nos minutos finais, o protagonista passou por uma jornada que o deixou em um embate interno poderoso que não precisa encontrar uma conclusão definitiva. Terminados os julgamentos, Percy pode ter contribuído para causas maiores do que seus objetivos iniciais, porém sua luta individual não foi plenamente correspondida com o melhor resultado. E essa contradição é percebida e verbalizada pelo personagem que não comemora a notícia dada por Rebecca, afinal a vitória pode ter sido de outras pessoas, mas a derrota, em parte, foi dele. Seria benéfico para “Uma voz contra o poder” tornar a discussão possibilitada pela trama mais expansiva do que acaba sendo, pois a sutileza do subtexto resvala na debilidade da mensagem em muitas ocasiões. Uma pena considerando a ressonância que o filme poderia ter, por exemplo no Brasil, onde os perigos da liberação de agrotóxicos perseguem a população e favorecem grandes empresas.