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“VALENTE” – O destino está dentro de nós

É preciso ter coragem para ver que o destino não é apenas uma sequência inevitável de fatos, mas sim uma construção. As decisões tomadas podem romper ou dar continuidade ao que foi construído pela tradição, pelo ambiente e por nossas escolhas anteriores. VALENTE (Brave, 2012), filme vencedor do prêmio de melhor animação no Oscar 2013, discute caminhos possíveis para mudar a tradição, para que as escolhas pessoais sejam valorizadas e para que as relações familiares sejam mais saudáveis. 

(Disney © / Divulgação)

A princesa arqueira Merida é filha do rei escocês Fergus e da rainha Elinor. Ela é habilidosa e deseja seguir seu próprio caminho na vida. Seu desafio a uma tradição milenar irrita os senhores das Terras Altas e pode iniciar um conflito no reino. Merida pede ajuda de uma bruxa, que concede a ela um desejo, que tem como consequência uma maldição. A princesa, então, deve descobrir o verdadeiro significado da coragem e desfazer a maldição antes que seja tarde demais.

O início da jornada da heroína é bem apresentado. De forma cuidadosa, o longa começa com a cena em que Merida ganha o arco de seu pai, o rei Fergus. Nesse momento, a rainha Elinor diz ao esposo que Merida não deveria ganhar uma arma, já que seria uma dama. Logo depois, um urso aparece no local onde a família comemorava o aniversário da princesa e o rei precisa lutar contra ele.

Após o corte e com o avanço do tempo na narrativa, descobrimos que, nessa luta, Fergus perdeu sua perna esquerda. Apesar de mostrar muitas cenas de batalha intensa, aqui, o filme opta apenas pela sugestão. Com poucos minutos, portanto, “Valente” demonstra as características básicas de seus personagens e a dinâmica entre eles. 

A relação familiar é o aspecto dramático da obra, uma vez que a protagonista precisa encontrar o equilíbrio entre as tradições que deve seguir e seus desejos pessoais. Durante todo primeiro ato, o roteiro mostra a diferença de tratamento recebido pela princesa em relação a seus irmãos mais novos. Em voice-over a protagonista diz que, enquanto seus irmãos são livres, ela precisa buscar a perfeição. Assim, é estabelecida a premissa do filme: os pais têm expectativas de que Merida seguirá seu destino. 

O modo como a estória avança é bastante comum, com uma estrutura já desgastada. Os roteiristas poderiam ter inovado, também, na construção dos acontecimentos, evitando tamanha previsibilidade. Porém, a inovação foi trazida na temática, em que uma princesa não está à espera de um príncipe, mas revolta-se contra a obrigação do casamento. Além disso, os pretendentes da princesa não são mostrados como salvadores intocáveis, mas como jovens superestimados por seus pais. Por isso, o roteiro é funcional e propõe questionamentos importantes para o espectador. 

Além das possíveis reflexões extraídas do longa, “Valente” pode ser uma boa diversão para as crianças. Com ótimas cenas de ação, lindas paisagens e uma heroína inspiradora funciona tanto para quem busca sentidos profundos, quanto para aqueles olhos curiosos diante das primeiras exposições ao cinema.

O tom do filme, aliás, é bem conduzido. Cenas cômicas são adicionadas para balancear as discussões difíceis e as consequências negativas das escolhas da protagonista. A diretora Brenda Chapman e o diretor Mark Andrews propõem um bom equilíbrio nas cenas dramáticas. Elas podem até fazer o público chorar, mas não têm como proposta levar as discussões entre mãe e filha ao nível da cena sobre o vestido vermelho em “Réquiem para um sonho”, de 2000 (clique aqui para ler a nossa crítica). Ainda assim, na animação também existe um sabor amargo na fala da rainha quando diz que apenas seguiu seu destino.

Para os detalhistas, o filme traz várias pequenas referências a outras obras. Talvez a principal delas seja uma homenagem aos estúdios Ghibli, com as criaturas que levam Merida até a casa da bruxa e, claro, com a própria bruxa – muito parecida com Yubaba, de “A Viagem de Chihiro” (clique aqui para ler a nossa crítica).

Os aspectos visuais são o ponto alto de “Valente”. Para chegar a este resultado, a equipe de animação visitou castelos na Escócia e testou as armas e o vestuário que seriam utilizados pelos personagens. O movimento da água e do cabelo, a sujeira na roupa, o impacto das espadas, tudo é utilizado para enriquecer o cenário e aumentar a imersão dos espectadores. 

Com essa riqueza visual, “Valente” introduz uma nova possibilidade para as princesas da Disney, o que também foi explorado por alguns de seus sucessores. Além disso, tem o cuidado de não sugerir um caminho fácil para o rompimento das tradições, indicando que estabelecer o diálogo entre pais e filhos pode ser a forma mais saudável.

Assim, o longa é detalhista não só nas imagens, mas na perspectiva que apresenta. Não se trata de um rei ensinando o filho a ser um grande guerreiro, mas de uma rainha, discretamente insatisfeita com sua vida, ensinando sua filha a como se tornar uma dama. Sem naturalizar os destinos, o filme mostra a inquietação da dúvida e o caos do rompimento. 

As mudanças necessárias podem partir de um caos inicial. No entanto, “Valente” não sugere a cisão como uma fórmula mágica para a transformação, mas como um possível gatilho. Afinal, coragem não é a ausência de medo, mas é agir no enfrentamento do medo e das consequências dessas ações. Com um tom otimista, o filme mostra, na relação entre mãe e filha, que o diálogo pode ser conciliador, que é necessário ceder para conquistar algo e que o destino pode ser criado com o que há de mais profundo em nós.