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“VAMOS NOS DIVORCIAR” – Progressão madura de estilos e conflitos [1 FCR]

VAMOS NOS DIVORCIAR é uma comédia romântica dramática sui generis. A começar pela impressão de que a trama será mais uma reciclagem da premissa “personagem trabalha demais e se afasta da família”. Em seguida, pelo curioso efeito do humor que parece deslocado na construção visual e mais compatível aos filmes franceses do gênero. Porém, à medida que a narrativa avança, os impactos cômicos se encontram e a experiência sensorial se transforma acertadamente em um retrato contemporâneo das relações sociais de gênero.

Na história, Masha é uma médica ginecologista tão entregue ao trabalho que não percebe que está prestes a ser abandonada pelo marido Misha. Quando a infidelidade do homem vem à tona, ela não aceitará perdê-lo para uma personal trainer mais jovem nem criar dois filhos sozinha. Então, para manter o casamento, está disposta até a recorrer a forças sobrenaturais.

(© Roskino / Divulgação)

Masha se dedica tanto à medicina que sua vida pessoal é invadida pelas obrigações profissionais constantemente. A diretora Anna Parmas cria momentos expressivos em que até a diversão de participar de uma competição de natação em família é interrompida por ligações do trabalho – ela precisa quase que ininterruptamente dar instruções para cirurgias ou atender pacientes, chegando ao ponto de falar com a TV durante a exibição de um programa médico. Dessa mistura entre atividades trabalhistas e intimidade do lar vem o humor de não se diferenciar o privado do público, como se vê nas cenas em que a protagonista entra em detalhes desconfortáveis do corpo humano durante as refeições e com os filhos próximos.

Com a saída do esposo de casa no primeiro ato, a mulher desequilibra de modo distinto vida pessoal e profissional. Enquanto está na clínica ou em contato direto com os pacientes, Masha tenta se comunicar com Misha através de telefonemas ou mensagens de áudio, desabafa em ocasiões impróprias para pessoas desconhecidas e precisa levar as crianças para o trabalho – logo, dessa vez, é sua profissão o alvo das invasões de questões particulares. A partir daí, consolida-se a abordagem cômica da cineasta através da ideia de constrangimento, tanto do ponto de vista dos personagens coadjuvantes quanto dos espectadores que presenciam o que não deveria ser exposto publicamente. Ao longo da produção, as situações ganham um crescente tom absurdo responsável por gerar humor e preencher os arcos do casal em separação.

Isso porque os dois atravessam suas próprias jornadas de enfrentamento do divórcio e das esferas diferentes de suas vidas. Inicialmente, Masha apela para meios esdrúxulos para recuperar o marido e ainda cuidar dos filhos (mantendo a combinação de constrangimento, absurdo e humor); já Misha parece finalmente alcançar o que tanto desejava ao se mudar para a casa de Oksana e conseguir um emprego – embora também tenha valor narrativo, esse núcleo custa a engrenar e a se relacionar à unidade estilística como um todo. Contudo, com o tempo, a mulher vivencia novas experiências com outras pessoas que apontam outras possibilidades a ela; e o homem se decepciona com o surgimento de novos problemas e a repetição dos antigos no trabalho e na relação amorosa. Em termos dramáticos, o roteiro se transforma gradualmente em direção a uma nova percepção sobre os relacionamentos sociais e familiares.

Essas transformações também ocorrem com as escolhas formais da obra e do estilo do humor. De início, a decupagem das cenas parece fazer parte de um gênero diferente da comédia assumida no texto, um descompasso que poderia afastar o público do humor pretendido por conta da sobriedade dos enquadramentos e dos planos abertos e contidos emocionalmente (de certa maneira, pode haver um estranhamento com uma comédia russa, afinal dramas secos como “Leviatã” e “Sem amor” chegam em maior número ao Brasil). No decorrer da narrativa, essa estética se justifica cada vez mais criando efeitos que vêm pelo contraste de esperar uma abordagem intensa (típica dos fatos da trama) e receber construções sóbrias. Anna Parmas ainda consegue articular momentos pontuais de maior estilização, a partir de brincadeiras com a trilha sonora e a montagem paralela.

A comédia passa por um processo próprio de alteração com o transcorrer do tempo. Ela se inicia com gags (a repetição dos pedidos do vizinho por menos barulho para não acordar seu bebê), piadas textuais (diálogos feitos em momentos inapropriados), reviravoltas absurdas de algumas cenas (como o desfecho da patética briga entre Misha e um colega) e a composição de sequências próximas de outros gêneros (o “ritual” para trazer o marido de volta brinca com sensações do suspense). Entretanto, o humor aos poucos perde força e o filme assume uma veia dramática, na qual a decupagem se torna clássica e discreta, assim como a interação entre os protagonistas adquire novos significados.

Preliminarmente, podemos imaginar que “Vamos nos divorciar” responsabilize Masha pelo fim do casamento devido a seu empenho no trabalho. Quando a produção se desenrola, é possível compreender o porquê de tanta dedicação ao emprego e o machismo presente na insatisfação de Misha com os rumos de sua vida. Dentro dessa perspectiva, não seria impossível notar um duplo amadurecimento: da narrativa e da protagonista, quando o equilíbrio de uma influencia na outra para refletir a instabilidade de sua relação pelo humor e a segurança do crescimento pessoal pelo estudo de personagem. Ainda que a construção estética dos últimos planos seja didática demais, ajuda a retratar que a mulher basta em si mesma.

* Filme assistido durante a cobertura do 1º Festival de cinema russo.