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“VIDAS À DERIVA” – Preocupação em errar pouco

Há uma parcela do público que se seduz facilmente com a expressão “baseado em uma história real”. Não é isso, contudo, que torna VIDAS À DERIVA um filme atrativo. Nesse quesito, a produção seria apenas mais um romance dramático do cinema de catástrofe, apto a comover os corações mais frágeis. O que chama a atenção no filme é que apresenta falhas diminutas no trivial, preocupação nem sempre presente no subgênero.

O longa retrata o romance entre Tami e Richard, que se conhecem no Taiti e decidem velejar por uma longa distância. A viagem se torna tormentosa quando, após um desastre, Tami fica sozinha, não sabendo direito como agir, já que Richard é que tinha experiência como velejador. É uma história de luta pela sobrevivência, usando recursos narrativos – guardadas as devidas proporções – similares aos de “Gravidade”.

Escrito por David Branson Smith, o roteiro divide a narrativa em duas: com o prólogo in media res (por sinal, um plano longo bem filmado), uma delas é a mais tensa, focada na sobrevivência; a outra, mais tênue, se refere ao romance de Tami e Richard. A bonança não aparece depois da tempestade, no caso de “Vidas à deriva”, há uma mescla até mesmo no bom clímax. O objetivo da separação é deixar o espectador curioso para saber como tudo deu errado e como vai acabar, já que limitar o plot à linearidade cronológica tornaria o longa obsoleto. Assim, de um lado, há o crescente romance do casal, marcado pelo espírito aventureiro de Tami e a paixão organicamente crescente que Richard nutre por ela; de outro, os desafios de uma velejadora inexperiente contra as intempéries inerentes à atividade.

Vivida por Shailene Woodley, Tami leva sua vida com ousadia, dando enorme papel ao imprevisível. Ela chega ao Taiti sem perspectivas futuras (sequer sabendo quanto tempo ficaria), tendo certeza, apenas, que quer conhecer o mundo, mas não voltar para a sua casa em San Diego. Woodley aparece bronzeada e com um figurino coerente com o clima do local (regata e shorts jeans, principalmente), levando o filme nas costas com sua elogiável habilidade interpretativa. Não que Sam Claflin seja inoperante no papel de Richard, o problema é que pouco se sabe sobre este, que é, basicamente, o carismático galã loucamente apaixonado, enquanto Tami relata consideravelmente sua backstory. Cabe a ela mostrar o quão hercúlea pode ser a tarefa de velejar, das alucinações à escassez de alimento, dos cálculos de navegação ao içar de uma vela. Itens básicos se tornam um alívio (como um creme para a pele, cujo cheiro é quase sentido pelo espectador, tamanho o alívio da personagem ao senti-lo), enquanto fenômenos naturais ordinários podem ser motivo de alegria (é o caso da chuva).

A maquiagem de ferimentos (cortes, hematomas etc.) é boa, assim como a edição de som, que se destaca ao explorar os ruídos do mar. Nesse caso, a mixagem de som erra ao episodicamente misturar esses ruídos com a também boa trilha musical, o que prejudica ambos, pois o design de som se torna confuso. A fotografia de Robert Richardson consegue planos belíssimos ao exibir planos gerais em que o barco fica solitário na imensidão do Oceano Pacífico, ou de um estonteante pôr do sol alaranjado. Também a direção de arte é deveras lúcida na utilização de três cores: na narrativa da tempestade, o amarelo está sempre presente (a regata de Tami, um cobertor, a capa de chuva, o binóculo); na bonança, azul e verde predominam. Mesmo quando o casal começa a velejar, em que a protagonista usa azul, é possível ver as alças de seu sutiã amarelo. Atentando para esse fator, é possível perceber claramente os caminhos da narrativa, principalmente os antecedentes ao uso do vermelho (que tem destaque apenas em uma cena).

O diretor Baltasar Kormákur repete um trabalho de cinema de catástrofe, já feito em “Evereste”. Aqui, o desafio do uso da água é vencido em especial na imersão do espectador, facilitada por recursos inteligentes: a filmagem em submersão ocorre bastantes vezes, normalmente acompanhando Tami; além disso, salvo nos planos gerais, a câmera é colocada dentro do barco, acompanhando o movimento do mar. É angustiante, por exemplo, quando a protagonista cai no mar, momento em que a câmera fica com ela, filmando o barco se afastar gradualmente. No clímax, porém, o visual fica bagunçado em demasia com planos fechados, hipótese em que um distanciamento – que ocorre na mesma sequência, com montagem paralela – se revela benéfico. Ainda acerca do clímax, a divisão, pela montagem, reduz sua intensidade, porém essa diluição evita que o momento se torne cansativo ou exagerado.“Vidas à deriva” pode não ser um filme grandioso (aparentemente, sequer tem essa pretensão), mas o cuidado da produção em evitar falhas o torna digno. Sem excessos, o filme retrata uma experiência bem conhecida na sétima arte, todavia com um esmero valoroso. E, na pior das hipóteses, ratifica a competência de Shailene Woodley.