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“VIDAS PASSADAS” [2] – Não adianta especular

Direção e roteiro primorosos constroem VIDAS PASSADAS como um romance contemporâneo, plausível e extremamente tocante. A primeira parte do filme, apresentando um casal na aurora da vida, pode estimular um engano, o de torcer por um destino. Entretanto, como ensina a mitologia coreana do in-yun, que ilustra o longa, às vezes o que já está traçado não pode ser mudado.

Na Young e Hae Sung têm doze anos e são melhores amigos. Sua amizade é rompida quando a família dela decide migrar da Coreia do Sul, afastando os dois. Doze anos depois, eles restabelecem contato virtual. Depois de uma empolgação inicial, o plano é um reencontro pessoal, o que pode ser mais difícil do que parece.

(© California Filmes / Divulgação)

A diretora e roteirista Celine Song impressiona muito ao apresentar ao público um excelente primeiro longa (o único trabalho anterior havia sido como corroteirista na série “A roda do tempo”, de qualidade baixa). As únicas três personagens do filme são muito diferentes, mas demasiado humanas para não estimularem a empatia. Desde a sua versão infantil, Na Young é uma garota competitiva e ambiciosa ao extremo, encontrando em Hae Sung um suporte emocional. Com a separação, ela precisou aprender que, nas suas palavras, “ninguém se importava” com o seu choro, perdendo um pouco de seu encanto pueril. “Aquela menina de doze anos que queria conquistar tudo”, como ele a chama, passou a ser uma jovem voraz e quase insuscetível de perder o foco – salvo em um lapso corrigido por ela mesma.

Muito mais tranquilo, Hae Sung é o sóbrio do grupo de amigos, sem grandes pretensões profissionais e de perfil mais romântico (é triste a maneira como olha, solitário, o casal no trem). As versões adultas de Nora (novo nome de Na Young) e Hae Sung, interpretadas, respectivamente, por Greta Lee e Teo Yoo, transmitem bem os dois lados tão diversos: ela, o da criança sonhadora que se tornou uma mulher muito determinada; ele, o do menino pacato que continua com objetivos mais modestos. Arthur (John Magaro, muito bem equilibrando humor claro com sutilezas sentimentais) é o terceiro item da equação, servindo como alívio cômico, mas também para ressaltar as enigmáticas diferenças do trio, tema das indagações do prólogo. Há uma parte de Nora que Arthur admitidamente não consegue acessar, o que a conduziria a Hae Sung, porém Arthur é como um ímã para o sucesso almejado desde a infância.

Elaborada a partir de elipses, a narrativa permite ao espectador acompanhar a progressão individual de Nora e Hae Sung, bem como o seu reencontro. Depois de uma primeira videoconferência, surgem conversas recortadas, extraídas pela montagem de diferentes contextos (cenários, vestuário etc.). A postura de Nora parece sofrer um desvio em relação à trajetória outrora planejada, para depois passar por uma retificação. O elo entre eles é único, apenas ele a chama de Na Young; mesmo Arthur reconhece haver uma parte dela quase pertencente a outra realidade. Porém, em uma cena em que Nora aparece em luz amarelada do sol nascendo e Hae Sung na iluminação azulada, ambos em close lateral e no silêncio, esse elo parece ser rompido.

Como se estivessem destinados – similar ao que estabelece a mitologia – a se reencontrar, com muitos “uaus” seguidos e brilho ímpar no olhar, lá estão eles novamente juntos. Nora e Hae Sung não precisam ter momentos regados a beijos e sexo, sua relação extrapola o carnal, é uma relação de almas. No pier com a roda gigante atrás, conversam em um diálogo esplendoroso, filmados por um two-shot de primeiro plano sem cortes. O azul presente nas cenas dele (iluminação e figurino) aos poucos é incorporado por ela, deixando os tons pastéis para Arthur, cada vez mais deslocado. Hae Sung usa calças de sarja e camisas justas em seu corpo atlético; Arthur está fora de forma, é mais baixo, com a barba por fazer e usa roupas menos formais. Nora encontra romance com o estadunidense também, como no encantador cenário bucólico em que ela explica o in-yun, mas o que ela compartilhou com Hae Sung é incomparável. O que poderia ter compartilhado ao longo dos anos, contudo, é inimaginável.

O romance é, assim, moldado por cenários relativamente comuns – a roda gigante, a rima visual dos monumentos acinzentados (em que brincam quando crianças, primeiro, e em frente aos quais se encontram quando adultos) – e uma trilha musical terna e delicada. É quase inescapável imaginar a vida que Nora e Hae Sung teriam tido se ela não tivesse emigrado da Coreia do Sul ou se eles tivessem se reencontrado antes dos longos vinte e quatro anos de espera. Porém, isso é fruto de especulação, pois não foi o que aconteceu com eles. Como na vida, os acontecimentos se dão de determinado modo e de nada adianta imaginar como teria sido se algo fosse diferente. Como na vida, os dois precisaram viver em razão e a despeito de tudo o que lhes ocorreu, doa a quem doer. E às vezes realmente dói.