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“VOCÊ NUNCA ESTEVE REALMENTE AQUI” – Os silêncios de uma dor

O cinema não é, necessariamente, uma forma de entretenimento leve e otimista que conforte o público. Muitas vezes, ele pode ser incômodo, angustiante e reflexivo a ponto de expor outras facetas da experiência humana. Esse é o caso de VOCÊ NUNCA ESTEVE REALMENTE AQUI, focado na trajetória de um personagem melancólico e fragmentado, bem como em temas perturbadores e sem solução fácil.

Baseado no livro homônimo de Jonathan Ames, a trama acompanha o veterano de guerra Joe, que se dedica a resgatar jovens feitas escravas sexuais, enquanto cuida de sua mãe idosa e doente. Quando uma das missões fracassa, ele precisa lidar com as consequências violentas da situação. O filme é um estudo de personagem, muito mais preocupado em desenvolver o protagonista e suas diferentes camadas de personalidade e comportamentos do que nas sequências de violência. O estilo evoca as narrativas de Martin Scorsese em “Taxi Driver” e Nicolas Winding Refn em “Drive”, por também utilizar um personagem sofrido emocionalmente, de poucas palavras e de manifestações de brutalidade e uma estética soturna à base de luzes neon. Alguns elementos narrativos relembram esses dois filmes diretamente: as sequências em que Joe anda de carro pela cidade (em referência a “Taxi Driver”) e os assassinatos cometidos com um martelo (em alusão a “Drive”).

A atmosfera da produção já é apresentada na sequência inicial, responsável por indicar as características da direção de Lynne Ramsey. A cineasta constrói uma narrativa seca, sombria, melancólica e de ritmo lento que prolonga os momentos narrativos com longos planos intimistas. A recorrência dos planos-detalhe e de closes nos coloca no interior de um estado de espírito infeliz e traumático. A câmera foge dos riscos de uma estilização exagerada e prefere um realismo sem slow motion e espetacularização da violência.

A própria filmagem das sequências violentas assume um tom visceral com objetivos narrativos. Os assassinatos praticados por Joe, geralmente, estão fora do plano ou enquadrados à distância e por câmeras de vídeo para simbolizar um personagem furtivo à margem da sociedade. Quando sua violência é explícita, outra função narrativa existe: transmitir a fúria reprimida em seu íntimo. A sequência da morte de um policial retrata seu descontrole (filmada pelo reflexo de um espelho) e da morte de um assassino de aluguel mostra a tentativa de Joe de criar algum vínculo emocional ao se deitar ao lado da vítima e apertar a sua mão. Desse modo, a violência não é gratuita, pois ela surge para completar o desenvolvimento dramático do protagonista.

A direção não conseguiria ser tão bem sucedida se não contasse com o apoio do trabalho de fotografia de Thomas Townend. Os sentimentos de solidão e tristeza são construídos pelos filtros de luz esverdeados e azulados dessaturados que permeiam a maioria dos planos passados à noite. O diretor de fotografia também utiliza um jogo de luz e sombras que envolve Joe em uma escuridão que apenas revela sua silhueta – pela técnica de iluminação, Joe é mostrado novamente como um sujeito fraturado psicologicamente e alheio ao convívio social rotineiro.

As análises sobre fotografia e direção nos fazem retornar ao tipo de personagem que o filme investiga e à bela composição de Joaquin Phoenix. Joe é um homem multifacetado e repleto de contradições e conflitos relacionados ao seu passado e ao seu modo de ser: ao mesmo tempo, resgata mulheres em situação de abuso sexual, tem métodos muito violentos e enfurecidos de ação, demonstra empatia nos cuidados diários à sua mãe doente, é atormentado por lembranças brutais da infância, tem pensamentos suicidas e dificuldades em se relacionar socialmente. O ator transita por tantas camadas dramáticas habilmente, sabendo transmitir sua fúria repentina pela expressão de ódio em seus olhos e sua angústia pelo olhar caído e por falas que são resmungos saídos de frestas na boca. Além de conseguir mostrar o desconforto com conversas banais que outros personagens tentam ter com ele (o pedido por uma fotografia por turistas parece algo muito estranho à realidade de Joe).

A caracterização de Joaquin Phoenix também é eficiente por interligar seu drama pessoal aos dramas vividos pelas jovens sequestradas. A partir do resgate de Nina (Ekaterina Samsonov), Joe volta a sofrer com memórias traumáticas ligadas a uma infância problemática e a um pai abusivo com sua mãe, algo que reverbera na escravidão sexual mencionada pelo roteiro – o recurso da contagem decrescente até o número zero é feita em momentos distintos por Joe e Nina e cria uma rima narrativa para os dois personagens. Não se trata, contudo, de igualar as duas situações de violência nem de tentar justificar a brutalidade de Joe como um produto do meio. Trata-se de abordar as angustiantes trajetórias de vida de indivíduos endurecidos por uma existência que dificulta relacionamentos sadios.

Ao final, uma sequência de diálogo passada numa lanchonete é símbolo das fraturas existentes nas pessoas que povoam aquele mundo. As possibilidades de um desfecho trágico ou de um suspiro de esperança são encadeadas rapidamente no que parece ser um futuro tão incerto àqueles com baixas expectativas. Um recorte triste da vida, porém nem por isso real nem contado com uma sensibilidade artística.