“WARRIOR NUN” – Crença na fantasia
Esperar que uma premissa caracterizada por um grupo de freiras caçadoras de demônios tenha apelo realista pode ser incompatível com WARRIOR NUN. A série disponível na Netflix parte dessa proposta imaginativa para alternar entre conflitos, semelhanças e diferenças da Igreja Católica e da ciência a partir de uma aventura com fortes doses de fantasia. Apesar de conter aspectos claramente fantásticos, a primeira temporada leva algum tempo para encontrar seu tom e sustentá-lo à medida que novos percalços aparecem na trama.
Baseando-se na HQ independente “Warrior Nun Areala“, escrita por Ben Dunn e publicada entre 1994 e 1996, a produção acompanha a jovem Ava ser ressuscitada por uma força misteriosa que lhe confere poderes especiais. Após voltar à vida, ela passa a ser perseguida por visões de entidades malignas, uma cientista interessada na fonte de energia presa em seu corpo e por uma seita de religiosos que querem convencê-la a lutar contra o mal. Entretanto, seu desejo é apenas aproveitar sua segunda chance de viver.
Poderia ser óbvia a opção de explorar desde cedo o lado fantasioso, mas os primeiros episódios seguem outra direção. A apresentação do universo contempla dois núcleos: o retorno inesperado à vida do protagonista, que se inicia deitada morta em um necrotério e se vê inserida em uma perseguição de uma figura monstruosa a mulheres enigmáticas; e a construção de uma mitologia baseada no imaginário cristão de céu e inferno formada, por exemplo, por uma fonte de poder transferida periodicamente entre as freiras (Halo), o resquício de relíquias sagradas usado como arma (divinium) e uma ordem secreta na Igreja. Cada segmento é encenado com uma seriedade que beira ao efeito de realismo e com uma mise en scène próxima da solenidade, características que pouco dialogam com o peso carregado pelos personagens e gerado por tragédias ou reviravoltas em seus mundos.
Quando o foco dos capítulos encontra a caracterização de Ava, a narrativa encontra também um estilo mais apurado para sua história inusitada. A começar pela atuação carismática de Alba Baptista, que encarna uma protagonista pela qual vale torcer e acompanhar, especialmente nos momentos de narração em voice over de seus pensamentos, que contêm dúvidas naturais de quem vivencia experiências desconhecidas (ainda que alguns episódios exagerem no recurso). Além disso, ela traduz com bastante espontaneidade a figura de uma jovem disposta a aproveitar a vida ao invés de lidar com a imposição de uma missão contra sua vontade – dessa maneira, interage com um grupo de jovens que pretende apenas se divertir facilmente e revela um humor contínuo capaz de ironizar a rigidez do convento para onde tentam levá-la ou controvérsias da Igreja (como o patriarcado da instituição).
Do mesmo modo, a mudança na abordagem do núcleo da seita se mostra acertada. Os showrunners Simon Barry e Stephen Hegyes comandam a representação ficcional da Igreja Católica como um ambiente com toques mágicos dissociados, em parte, da religião: a origem da Ordem da Espada Cruciforme; os treinamentos em luta corporal e uso de armas de fogo pelas irmãs Mary, Lillith, Beatrice e Camilla; a coreografia estilizada dos confrontos físicos; a presença da violência nessas sequências de ação e no linguajar agressivo de algumas delas; e na composição dos figurinos em um misto de hábito religioso e traje de guerreiros. Há espaço, inclusive, para humanizar alguns coadjuvantes, como Mary, através de sua origem outsider para o meio onde está e Beatrice através das pressões sociais colocadas sobre ela – essa humanização funciona para as duas, mas soa deslocado para o padre Vincent.
Não seria de se espantar que a representação do catolicismo e da Igreja incomode alguns espectadores. Afinal, critica-se a politicagem na instituição e possíveis usos distorcidos da religião para manipular os fiéis, além de utilizar princípios religiosos para criar uma jornada digna de histórias de fantasia com regras muito particulares. É justamente esse último ponto que pode proteger o seriado de duros ataques, já que o objetivo é muito mais inserir traços fantásticos e místicos do que construir uma versão absolutamente fiel dos dogmas (o que fica latente nas composições em câmera lenta com um trilha sonora estilizada nas cenas em que um grupo de personagens caminha lado a lado). Algo similar ocorre com a construção fictícia da ciência a partir da pesquisadora Jillian, que estuda a possibilidade de usar artefatos sagrados com o intuito de fazer uma descoberta que se afasta da racionalidade e chega ao misticismo.
Por outro lado, encontrar o tom que desenvolve seu potencial não assegura a superação total dos tropeços. O oitavo episódio é um exemplo expressivo da oscilação ao enfraquecer o fantástico observado anteriormente nas cenas de ação, tanto por abusar da verborragia (tudo o que acontece é explicado por diálogos entre os personagens) quanto por tornar momentos vibrantes confusos e apressadamente resolvidos (o cumprimento de uma missão por Mary e Vincent). Tecnicamente, a decupagem das sequências de ação soa incoerente quando emprega o contreplongée para enfocar o cenário e o céu avistados no convento e se movimenta a câmera de modo circular sem conseguir dar efeito especial ao confronto filmado.
Apesar de somente ter definido uma unidade estilística no meio da temporada e assim ter enfrentado instabilidades no início e no fim, “Warrior Nun” pode divertir. É a sensação deixada, principalmente, nos últimos episódios, quando a escala dos desafios e o alcance das ameaças aumentam em virtude da sucessão de reviravoltas, conseguindo inclusive encerrar com um clímax envolvente e cliffhangers atrativos. Não é necessário, portanto, criar uma narrativa complexa e densa para fazer com que a série ofereça um bom entretenimento saído diretamente da fantasia.
Um resultado de todos os filmes que já viu.