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“WOLFWALKERS” – Um conto de fadas libertador

WOLFWALKERS é um desbunde visual. É bastante improvável passar pela experiência de assistir à animação sem se sentir hipnotizado pelas formas, luzes, cores e traços que ocupam a tela, criados através de diferentes técnicas. Porém, o que poderia soar simplesmente como um recurso interessado na estética pela estética se integra muito bem ao conjunto dramático da obra. Afinal, a narrativa é uma fábula e está estruturada sob variadas concepções de liberdade.

(© Apple Productions / Divulgação)

O centro da ação é um povoado na Irlanda em uma época de superstição e magia, quando os lobos são vistos como demoníacos e a natureza um mal a ser domado. Nessa ambientação, Robyn é uma jovem caçadora aprendiz que se muda para o local com o pai Goodfellowe querendo ajudar a eliminar o último bando que vive ali. Tudo muda de figura ao conhecer uma garota nativa selvagem, pois descobre o mundo dos Wolfwalkers e se transforma no ser que o pai tem a tarefa de abater.

Primeiramente, a busca pela liberdade envolve a trajetória da protagonista: quer sair para caçar os animais, mas Goodfellowe se recusa a deixá-la ir e insiste para que ela cuide das tarefas da casa (mesmo que tal postura reflita uma mentalidade histórica, também é possível sentir o excesso de zelo do homem em proteger a filha). Com o passar do tempo, o enclausuramento da jovem não se mostra apenas espacial, já que ela se vê confinada aos costumes e as crenças da Idade Média, período no qual as mulheres eram obrigadas a cumprir atividades domésticas segundo alegações religiosas (por isso, ouve-se repetidamente de uma senhora o lema “Trabalhar é orar”). Desse modo, a trama é contextualizada pelo design de produção dentro do mundo medieval, apresentando um castelo para o governante, soldados de armaduras típicas, feiras comerciais na cidade, o portão gradeado na entrada e a indumentária em flâmulas e em outras peças de decoração.

Esse mesmo cenário trabalha outras dimensões do ser livre ao enfocar o governo de Lord Protetor e a situação dos súditos. Os moradores são oprimidos por um tirano que não aceita críticas (como o sujeito preso por questioná-lo), reprime duramente revoltas populares por melhores condições de vida e justifica suas atrocidades com uma suposta orientação divina (o dever de civilizar uma terra “hostil” com um povo “inferior” e governar dentro dos dogmas conservadores do cristianismo à época) – além de simbolizar o autoritarismo da Idade Média, a dinâmica também referencia o expansionismo militarizado da Inglaterra que dominou outros povos. Para isso, a animação da cidade é seca e dura como se fosse uma xilogravura rústica e tem trechos expressionistas durante cenas em que a protagonista é ameaçada por um garoto e pelo Lord Protetor, investindo no contraste entre luzes e sombras.

Robyn, por sua vez, contraria as interdições impostas a ela e vai para a floresta caçar os animais que atormentavam a cidade. Entretanto, passar algum tempo na mata e conviver com Mebh a leva a repensar suas certezas e perceber que os lobos não são ameaçadores como imaginava. Na realidade, os seres da floresta são vítimas do crescimento desordenado da cidade, que avança e retira o hábitat daquelas criaturas – inclusive, Mebh e sua mãe estão à procura de um novo lugar para irem e serem verdadeiramente livres. Nesse sentido, a oposição entre os dois espaços não é apenas textual (Mebh chamar Robyn de citadina), pois a animação da natureza é mais deslumbrante com formas e composições maleáveis e flexíveis, chegando a parecer uma pintura em aquarela que combina a beleza visual à sensação de contemplar um livro de conto de fadas.

A floresta, portanto, é uma ambiente de maior liberdade estética e dramática. Além da animação feita de modo artesanal com ajustes digitais, o filme aproveita o estilo plástico das imagens para emular a profundidade do 3D sempre que os enquadramentos são ampliados para planos gerais (assim, o público se sente envolvido pelas árvores e pelo céu que abraçam e convidam a entrar). Com essas escolhas expressivas, os diretores Tomm Moore e Ross Stewart levam a busca pela liberdade para uma dimensão mística ao valorizarem o mágico e o folclore a partir da criação de um mitologia específica para os Wolfwalkers, seres que se comunicam com os lobos. A penetração da magia na história se intensifica ainda mais quando o contexto histórico reaparece, fazendo o misticismo enfrentar o preconceito de ser atacado como feitiçaria. Por sinal, Tomm Moore fecha com esse filme uma trilogia sobre o folclore irlandês, composta também por “O Segredo de Kells” e “Canção do Mar“.

Mesmo que existam diversas concepções de liberdade, a evolução dramática de Robyn destaca a luta pela libertação feminina de um universo opressor. Imediatamente é o que se nota na sua motivação inicial de poder ser uma caçadora, o que gradualmente se transforma em um processo de conquista de seu próprio lugar em um mundo mais livre que não a obrigue a ser o que não deseja – tal recurso pode ser representado pela fala da jovem ao seu pai em que diz se sentir presa em uma jaula. Além disso, a importância de Robyn, Mebh e da mãe dessa última no centro dos conflitos e do clímax indica como três mulheres movem a narrativa e resolvem os desafios e adversidades que vêm da cidade; e a composição visual das três personagens evoca uma liberdade vinculada a uma natureza “selvagem”, especialmente por terem longos cabelos que se assemelham às raízes de plantas.

O desenvolvimento da narrativa reafirma em muitos aspectos que se trata de uma história sobre aprisionamento e liberdade. Pode ser uma sensação de confinamento por ser mulher dentro de um sistema patriarcal; por ser uma população subjugada por um tirano sustentado pelo poder militar e pela religião; por fazer parte da natureza devastada pela urbanização predatória; e por integrar mitos e folclores inferiorizados por uma cultura hegemônica. Ainda que as interdições sejam muitas, a libertação ocorre também em sentidos variados seguindo a proposta de ser um conto de fadas que dialoga com as revistas em quadrinhos, já que alguns enquadramentos gerais ou aproximados remetem à arte das HQ’s. As personagens principais, a natureza e a magia triunfam e, como diz a canção “Howls the wolf“, os lobos correm livres.