“ESPERO QUE ESTA TE ENCONTRE E QUE ESTEJAS BEM” – Uma história de amor às memórias
Em dado momento, o motorista que transporta a diretora Natara Ney pelas ruas de São Luís explica como a memória é uma reconstrução subjetiva e parcial do passado. Nesse processo, uma porção dos tempos pretéritos pode reaparecer a partir de negociações, lembranças, esquecimentos e silenciamentos. Tais ideias fazem todo sentido para ESPERO QUE ESTE TE ENCONTRE E QUE ESTEJAS BEM, um documentário interessado no tempo, no amor e na saudade. Na narrativa, a subjetividade dá o tom na reconstituição de um romance que começa nas relações humanas e chega à construção de memórias.
O caso de amor mais explícito é aquele entre Lúcia e Osvaldo, registro nas cartas escritas por ela em Campo Grande no Mato Grosso do Sul para o noivo no Rio de Janeiro. Em 2011, um lote com 180 dessas cartas foi encontrado em uma Feira de Antiguidades no centro do Rio de Janeiro. Durante os anos de 1952 e 1953, as correspondências relatam como é viver apaixonada e à distância. Quando esta descoberta chega às mãos da documentarista Natara Rey, ela inicia uma investigação para localizar o casal apaixonado e descobrir o desfecho do relacionamento.
Desde o princípio do filme, Natara Ney direciona sua câmera para as fontes de armazenamento e ativação das memórias: objetos antigos. Os espectadores podem fazer parte, junto à cineasta, de um passeio pela Feira de Antiguidades e observar fotografias, cartões postais, relógios, moedas, cartas, vasos, peças de decoração e outros artigos que carregam em si mesmos. Ao longo da narrativa, os planos detalhe sobre estes e outros objetos continuam sendo feitos, inclusive em momentos em que os entrevistados relatam a importância das coleções para a preservação do(s) passado(s). Provavelmente, o uso do plural para se referir a tempos mais antigos seja, de fato, a opção mais acertada, já que os testemunhos de diversas pessoas ressaltam o valor informativo e sentimental daqueles itens. É possível lembrar, através deles, dos hábitos culturais evidenciados pelos discos de músicas, das mudanças paisagísticas ao longo do tempo demonstradas por fotografias da natureza do Rio de Janeiro e dos modos de vida de outras épocas representados pela cultura urbana de bondes e outros meios de transporte.
Por mais que o documentário deixe claro imediatamente seu interesse de investigar o romance de Osvaldo e Lúcia a partir de suas cartas de amor, outras histórias pessoais desabrocham ao longo da investigação. A própria diretora utiliza pontualmente a narração em voice over para expor o quanto sua jornada investigativa também se tornava uma maneira de lidar com amores que partiram ou se afastaram e deixaram muitas saudades. E os entrevistados compartilham suas próprias recordações de outros tempos, repletas de saudade, nostalgia ou até certa postura crítica. É assim que homens e mulheres comentam suas próprias experiências de escrever e receber cartas (um costume entendido como um ato de profunda conexão emocional), lamentam como o romantismo parece enfraquecido nos dias atuais, afirmam que o amor molda qualquer tipo de relação, relembram seus próprios romance, mas também questionam o conservadorismo de um tempo em que as mulheres apenas poderiam trabalhar em casa e viviam submetidas às vontades dos maridos ou dos pais.
A relação amorosa registrada nas correspondências também desencadeia temas políticos e sociais mais amplos da história do país. O percurso feito com o objetivo de unir pistas e seguir um fio até descobrir o paradeiro do casal leva a diretora a conversar com diversas pessoas que conheceram Osvaldo, Lúcia ou ambos e a transitar pelo Rio de Janeiro, por São Luís e Campo Grande. Em muitas dessas conversas, os efeitos da passagem do tempo eram compreendidos sob a chave de uma nostalgia em relação ao passado e de um lamento diante de certas transformações do presente: por exemplo, um senhor critica a efemeridade dos recursos tecnológicos de hoje, incapazes de garantir a conservação da memória por tudo ser tão facilmente “deletável”, e uma moça expõe as perdas culturais e históricas ocorridas em São Luís com o fechamento e demolição de todos os cinemas de rua da cidade. Entretanto, Natara Rey não cai na armadilha de considerar o passado um paraíso idílico, pois mostra como o fechamento da empresa aérea Panair pela ditadura civil-militar significava a repressão aos opositores e o encontro dos antigos trabalhadores e suas famílias até o presente seria um modo de tornar a memória um ato de resistência.
Consequentemente, os rumos tomados pela investigação e pelo filme evidenciam como a memória é algo complexo que se manifesta de múltiplas maneiras. O registro e a difusão de diferentes recordações e temporalidades pode se dar também através de lugares e construções. Se um dos entrevistados comenta que a fotografia é uma estratégia para capturar um instante que poderia se perder, ruas, prédios e monumentos são artefatos que marcam a intervenção humana ao longo do tempo e igualmente guardam suas próprias lembranças. Assim, os arquivos públicos são capazes de preservar diferentes tipos de histórias e trajetórias; as praças abrigam monumentos reveladores da história do país ou da cidade e conversas entre pessoas sobre o ontem, o hoje ou até o amanhã; alguns edifícios ainda podem conservar marcas de décadas passadas embora possam ser reestruturados e ressignificados; e ruas, como a rua do Ouvidor no centro do Rio de Janeiro, carregam sua própria história composta pessoas que transitaram por ali, atividades que foram realizadas e espaços criados e recriados com a passagem do tempo.
É importante perceber que a memória pode ter seus “inimigos” ou ameaças, muitos deles criados pelo próprio tempo, uma categoria ambivalente que pode trazer sensações positivas e gerar esquecimentos. Ao longo da narrativa, a câmera busca diretamente os objetos e lugares portadores de memória (inclusive, fazendo panorâmicas sobre os locais visitados ou mencionados e exibindo imagens de arquivo de suas aparências no passado), assim como representa de modo direto os elementos perigosos para a preservação das recordações, do tempo e dos amores. Estes podem ser os avanços tecnológicos desenfreados que tornam rapidamente experiências obsoletas e passageiras, os processos históricos violentos da ditadura civil-militar brasileira que silenciam histórias em nome de uma versão oficial autoritária, as intervenções urbanas de autoridades públicas que apagam traços da cidade em prol de um discurso modernizador e os sintomas do mal de Alzheimer que podem afetar a condição física de seus portadores (algo, inclusive, abordado por alguns indivíduos durante o filme).
Mesmo diante dos percalços ao longo da jornada, o documentário segue sua reconstrução de tempos já vividos e memórias em constante reformulação até a descoberta final sobre a situação do casal Osvaldo e Lúcia. No clímax dessa revelação, Natara Rey consolida o que foi seu trabalho desde o princípio: a construção de um sensível mosaico que entrelaça tempos, saudades, distâncias e romances de forma a demonstrar como são tão importantes as memórias para a humanidade. Sem as recordações de suas vidas, identidades se perdem, emoções são reprimidas e trajetórias são diminuídas. Enquanto a diretora leva pela mão cada espectador por esse percurso entre o passado e o presente, o amor toma conta inclusive da narrativa, visto no lirismo das imagens aparentemente prosaicas e de frases tão potentes. São afirmativas poderosas, como “longe é uma distância matemática, enquanto distante é uma distância emocional”, “a chuva molha o sorriso e esconde as lágrimas”, “queria olhar o mar através dos olhos dela” e “quando o olhar de Osvaldo chegou na casa de Lúcia, trouxe junto o amor”. Desse modo, a documentarista consegue enviar para os espectadores seu desejo de que este filme te encontre e que estejas bem.
Um resultado de todos os filmes que já viu.