“SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES” – Despretensão
Em um de seus doze trabalhos, Hércules precisava obter as maçãs de ouro do jardim das Hespérides. As maçãs, símbolo da imortalidade, eram um presente da deusa Hera a Zeus em seu casamento e tinham a proteção das ninfas Hespérides, filhas do titã Atlas, e do dragão Ladão. Alguns desses elementos mitológicos estão em SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES, porém a maneira superficial como eles são mencionados (deixando de lado a adaptação ao universo diegético, é claro) é indício do quão despretensioso o longa se propõe a ser.
Enquanto Billy Batson e seus irmãos combatem o crime e ajudam as pessoas em necessidade em sua cidade, as três filhas de Atlas, Héspera, Calipso e Anthea, planejam usar uma perigosa arma que vai tirar deles as suas habilidades mágicas. O objetivo das vilãs é restaurar a ordem na qual apenas deuses tinham superpoderes, mas isso pode custar inúmeras vidas.
A continuação de “Shazam!” (2019), é dirigida novamente por David F. Sandberg, o que implica que os erros e acertos são repetidos, sem progressos substanciais. Nesse sentido, os efeitos visuais são bons apenas eventualmente (o poder axial é bem feito; as criaturas mágicas, nem sempre; Ladão, nunca – o dragão mais parece uma árvore antiga bastante falsa) e há um excesso de pirotecnia, típico de filmes de super-heróis, que torna o longa enfadonho. Por outro lado, desta vez Sandberg aproveita seu know-how do terror (gênero no qual sua filmografia é vasta) para simular, episodicamente, uma atmosfera assustadora, nomeadamente na primeira aparição de Ladão e na de outro animal fantástico (uma das melhores cenas do filme, por sinal).
Textualmente, Henry Gayden é mantido na função de escrever o roteiro, com a substituição de Darren Lemke (corroteirista do primeiro filme) por Chris Morgan. O currículo de Gayden é modesto, ao passo que o de Morgan é mais extenso quantitativamente, com qualidade muito questionável – é ele a mente brilhante por trás de scripts como os de “Velozes e Furiosos” em seus episódios 4, 5, 6, 7 e 8. Talvez seja por isso a pequena queda qualitativa em relação ao filme anterior (que já não era digno de tantos elogios, é verdade). Por exemplo, há um fundo de mitologia grega, mas ela é apropriada simplesmente para criar as vilãs (por outro lado, a continuação é bem amarrada em relação às consequências do que ocorreu no antecessor), sem aproveitar as alegorias incomparáveis daquela mitologia.
É interessante que as três vilãs sejam diferentes não apenas nos poderes, mas também nas personalidades – Héspera (Helen Mirren, figura sempre imponente, mas aqui em razão do figurino e mesmo da idade, não da construção da personagem) é a mais objetiva e racional; Anthea (Rachel Zegler, em atuação no máximo medíocre), a mais compassiva; Calipso (Lucy Liu, sem emoções no papel), a mais malvada -, mas mesmo isso poderia ser mais explorado. O roteiro demora para deixar realmente claro o objetivo das antagonistas e sua motivação é forte apenas em um diálogo de Héspera com Shazam, um elo um pouco frágil para algo tão importante.
Com easter eggs sempre que possível e comédia infantil e inofensiva, “Fúria dos deuses” reutiliza a fórmula do primeiro no humor de diálogos e situacional, tornando-se não raras vezes repetitivo (como na piada com nomes errados, em que tanto Billy quanto o Mago (Djimon Hounsou) encontram dificuldade em recordar, cada um, um nome específico). Zachary Levi está novamente confortável no humor do protagonista, porém a diferença de personalidade em relação a Billy (vivido pelo sério Asher Angel, que, não à toa, tem como melhor momento uma cena dramática) dificulta a crença de que são a mesma pessoa (o que, todavia, é facilitado pelo fato de que Angel aparece pouco). Quem realmente se destaca, porém, é mais uma vez o ótimo Jack Dylan Grazer, peça essencial em termos narrativos e cômicos. Freddy tem um arco de heroísmo e de romance, fazendo com que precise enfrentar vilões dotados (as filhas de Atlas) e não dotados (bullies) de poderes com a mesma coragem que acaba encantando Anne. A ideia de que o heroísmo está em si e não na mágica é corporificada em Freddy, com maior ênfase desta vez. Quanto a Billy, o arco é de crise existencial e conceito familiar: ele se sente uma fraude enquanto super-herói, mas agora encara melhor os irmãos enquanto tais. O medo do abandono é representado por ele, também com maior ênfase. Não é difícil perceber que há muita repetição da película de 2019.
“Shazam! Fúria dos deuses” é previsível e clichê, mas claramente não quer ser muito mais do que isso. Ainda que mencione a homossexualidade de uma das personagens e mesmo sendo louvável que o faça de maneira natural, não há senso crítico algum, evitando maiores controvérsias. Sendo mais exigente, percebe-se que sequer no que a produção tem como principal ela é convincente de verdade (por exemplo, Billy não consegue validar a si mesmo enquanto herói sem uma validação externa). Nem todo filme precisa ter a ambição de inovar, mas a despretensão demasiada é entediante.
Em tempo: há mais uma vez duas cenas pós-créditos. Até nisso o filme é uma repetição.
Em tempo (2): em razão do intervalo entre os filmes, as crianças já não são mais tão pequenas e as mais velhas já são adultas. A demora da produção, seja qual for o motivo, foi prejudicial ao resultado neste ponto de vista.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.