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“AGENTE DAS SOMBRAS” – O pretexto do arrependimento

Em “Legado explosivo” (clique aqui para ler a nossa crítica), Liam Neeson faz um ladrão que decide viver uma vida honesta e, para reduzir a sua pena, entrega a fortuna que fez com seus assaltos. Seu arrependimento não serve para qualquer reflexão crítica mínima de um senso moral ou sobre a mudança de vida, mas é um pretexto para cenas de ação. A mesma lógica se aplica para AGENTE DAS SOMBRAS, em que Neeson repete a parceria do que é ainda mais que um Liamneesonverso, mas uma continuação espiritual.

Travis Block é um agente que apaga os rastros do FBI da maneira que for necessária. Quando descobre que acabou ajudando uma conspiração maior do que pensava, ele entra em rota de colisão com seu chefe, um homem capaz de eliminar qualquer um que fique no seu caminho.

(© Califórnia Filmes / Divulgação)

Por mais cômico que pareça, o plano do vilão não é explicado em momento algum. Aidan Quinn de fato soa como uma figura quase cartunesca, acidentalmente cômica em sua corrida patética (uma fuga a pé na qual seria alcançado por uma criança engatinhando) ou ao apanhar de Travis dentro do veículo em que estão em razão de manobras com o carro. A hipocrisia de seu discurso não seria problemática não fosse a maneira resumida com que o antagonista é retratado – leia-se, como alguém que quer manter o poder que tem (e ponto). Para coroar, em uma de suas últimas aparições ele tenta comover o herói de maneira novamente patética (ao chamá-lo de amigo e afirmar, para a surpresa de zero pessoas, que não tem nada a perder), interrompendo bruscamente a ação. É coerente a mudança brusca da trilha musical (até então, uma trilha genérica de filmes de ação) nesta cena específica, porém isso não é exatamente um elogio.

Não que “Legado explosivo” seja uma obra-prima, mas Mark Williams piora consideravelmente o seu trabalho em um curto espaço de tempo (2020 para 2022). Para a sua proposta, é de se esperar cenas de ação beirando o surreal, porém o que Williams apresenta é simplesmente ruim. Pouco importa a suspensão da descrença, o que não é possível perdoar são cenas cuja injeção de adrenalina embaça tudo o que deveria estar sendo visto – seja no excesso de cortes na perseguição a Drew (Tim Draxl), seja na decupagem pavorosa do clímax. Inverossimilhanças seriam ignoradas se a inabilidade do cineasta não fosse tão gritante.

O mesmo quase não se aplica a Liam Neeson. Travis tem seis características. Primeiro, é obsessivo, então os seus tiques são constantemente expostos para o espectador (em planos-detalhe, para ter certeza da clareza), o que ocorre desde o primeiro minuto em que ele aparece (olhando no retrovisor) e em todos os diálogos travados com Amanda (Claire van der Boom). Segundo, é praticamente infalível, perfil já desgastado dentro do liamneesonverso (faz isso há “tempo demais”, como Travis admite no lugar do seu intérprete) e que poderia ser melhor trabalhado se exploradas as suas falhas – ao invés disso, seus erros são aproveitados pelo vilão para parecer mais malvado. Terceiro, é um avô que quer ser presente, o que não é possível na função que exerce (os mencionados diálogos com Amanda são esquisitos, ele parece passivo-agressivo mesmo quando quer ressignificar a si mesmo). Quarto, é o mentor de Dusty (Taylor John Smith), personagem instrumental cuja personalidade atribuída apenas ao final sugere um arrependimento quanto ao vazio que prevalece. Quinto, como não poderia ficar de fora, Travis é arrependido: apenas quando algo trágico ocorre ele passa a ter senso crítico efetivo. E sexto, é lento, como se percebe na luta com Dusty, uma das melhores cenas.

O texto escrito pelo diretor junto de Nick May (este responsável também pela estória ideada com Brandon Reavis) em alguns momentos tenta ser um thriller político – aliás, é assim que começa -, porém é tão raso que qualquer pensamento a esse respeito se esvai rapidamente. Na verdade, qualquer reflexão possível é inócua diante da mescla de elementos sem profundidade ou coesão, de Edgar Hoover à bandeira dos confederados, do trabalho do FBI a julgamentos morais sobre ordens recebidas. A narrativa é extremamente protocolar e recheada de frases de efeito como “isso mesmo e é isso o que eu farei”, “não foi sorte, ainda bem que tínhamos você” e (a melhor de todas:) “usar sua família para te chantagear é tão errado”.

Emmy Raver-Lampman se esforça no papel de uma jornalista investigativa corajosa, todavia o roteiro é cruel com a atriz. Durante boa parte do filme ela parece inteligente, o que muda completamente quando ela declara ter descoberto que a grande conspiração que ela estava investigando é uma grande conspiração. Claro, Raver-Lampman faz parte de um projeto muito maior que seus eventuais dotes cênicos. “Agente das sombras” foi produzido para repetir “Legado explosivo”, mesmo que com roupagem levemente distinta (daí porque constitui uma “continuação espiritual”). Se o arrependimento serviu de pretexto para as tramas dos dois longas, talvez sirva também para que Liam Neeson perceba que está trabalhando em filmes ruins.

Em tempo: assistir ao filme é um arrependimento? Mesmo filmes ruins têm algo a acrescentar, ao menos pela diversão vazia. Deve ser o caso de “Agente das sombras“.