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“BAILARINA” – O anzol e o cordão

Criar um universo cinematográfico é um enorme atrativo para os estúdios. Com um anzol prendendo o público, cria-se com a linha um cordão que o amarra para as sequências, desde que seguidas as regras (formais e materiais) preestabelecidas, sendo a originalidade, então, relativamente dispensável. Produtos originais têm se tornado raros porque não têm o anzol das sequências, tampouco o cordão do universo – são, portanto, menos lucrativos. É nesse contexto que o universo de John Wick deu origem a BAILARINA.

Após a morte de seu pai quando ainda era criança, Eve nutriu um sentimento de vingança contra os responsáveis, mesmo sem saber praticamente nada a seu respeito. Criada na Ruska Roma, seu disfarce de bailarina oculta as habilidades de uma assassina altamente treinada. Seu verdadeiro alvo, todavia, não são aqueles a quem é ordenada para matar, mas aqueles contra quem almeja se vingar.

(© Paris Filmes / Divulgação)

A tradição de exército de um homem só – ou, mais precisamente, exército de uma pessoa só, dado que o cinema passou a adotar figuras femininas nesse tipo de papel – não é novidade e suas regras são mais do que consolidadas. É de se esperar, nesse sentido, uma protagonista obstinada, fria e calculista, mas com um sentimento nobre no fundo de sua personalidade, um vilão difícil de se atingir, batalhas eletrizantes (com e/ou sem armas) e uma trama modesta. De modo geral, esse quadro está presente tanto em “Bailarina” quanto nos filmes da franquia John Wick. O problema para o longa dirigido por Len Wiseman é que os quatro filmes dirigidos por Chad Stahelski (“De volta ao jogo”, “John Wick: um novo dia para matar”, “John Wick 3: Parabellum” e “John Wick 4: Baba Yaga”) estabeleceu um patamar alto demais para a ação (em especial no quarto longa), o que não é atingido no spin-off do mesmo universo.

Embora a franquia tenha deslizes, sobretudo nos roteiros, a ação proporcionada é inquestionavelmente primorosa. Shay Hatten, que corroteirizou “Parabellum” e “Baba Yaga”, assume sozinho a função em “Bailarina”, deixando ainda mais a desejar. Há duas falhas de realce. A primeira é que o filme se leva a sério demais – algo que se reflete também na direção, evidentemente -, o que é perceptível desde a sua premissa, isto é, de uma mulher se vingando de quem matou seu pai quando infante. Paradoxalmente, as consequências da criação na ausência de uma figura paterna – o que poderia ser preenchido por Winston (Ian McShane), por exemplo – inexistem. A protagonista é uma máquina de vingança, ela é motivada por um trauma de infância gravíssimo, o que a torna séria demais desde o início. Sua situação é, portanto, muito diferente do seu colega de profissão, cuja vingança é motivada por uma dor bem menos traumática (o que também dá indicativos sobre o se levar a sério).

A segunda falha do roteiro é a tentativa de elaborar uma trama um pouco mais sofisticada, o que, na verdade, não é essencial. Certamente isso seria benéfico, mas o script esboça circunstâncias no arco de Eve que em nada agregam à personagem. As personagens de Norman Reedus e Ava Mccarthy servem para que Eve detecte um possível futuro sofrimento idêntico ao seu, mas as personagens não são trabalhadas o suficiente (os diálogos com Daniel, por exemplo, são brevíssimos). Sua amiga Tatiana (Juliet Doherty), por sua vez, é praticamente inútil na narrativa. Ao invés de enxugar o roteiro e focar na ação, Wiseman finge dar profundidade à protagonista, o que na verdade não ocorre. A falta de carisma da personagem principal, vivida por Ana de Armas, não colabora em nada. Como nos outros longas da franquia, liberdade e determinismo compõem o subtexto, mas a maneira como esses temas são abordados, em especial através da personagem de Gabriel Byrne, é rasa demais.

Embora Wiseman faça o filme pertencer ao universo John Wick, esse pertencimento é relativo. Apesar de compartilhar personagens – como Winston, a Diretora (Angelica Huston) e (como não poderia deixar de faltar, com considerável tempo de tela, mas relevância narrativa ínfima) o próprio Wick (Keanu Reeves) – e as idiossincrasias desse mundo (o Continental, a central de contratos, a Ruska Roma etc.), esteticamente, “Bailarina” está muito aquém dos quatro outros filmes. As cenas de luta mantêm o uso de armas variadas (para valorizar o treinamento da/o assassina/o) e a economia de cortes na montagem, mas os cenários são geralmente escuros (reduzindo a visibilidade, recurso comum em filmes que visam ocultar sua limitação na mise en scène) e os embates nem sempre são convincentes mesmo usando uma lógica similar à dos filmes de Stahelski. Exceto quando as armas são lança-chamas (cuja dança das labaredas é atrativa até se tornar tediosa, salvando-se ao final), as cenas de ação são apenas razoáveis, longe das memoráveis batalhas envolvendo Wick. Na trilha musical há Vivaldi e Beethoven, deixando em dúvida se o faz por falta de criatividade ou por apelo ao inatacável.

O principal atrativo de “Bailarina” é que, por fazer parte do universo John Wick, o anzol já foi usado, estando o público devidamente amarrado. O que olvidam seus produtores é que um integrante indevidamente afiado pode romper o cordão e fazer os espectadores largarem os produtos.