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“CREED III” – O passado que poderia ter se passado

O que mais diferencia “Creed: nascido para lutar” de “Creed II” e CREED III é o fato de que apenas o primeiro se volta para o futuro de seu protagonista. A estrutura arquetípica da ascensão funciona perfeitamente no longa de 2015, de modo que as continuações têm dificuldade para lidar com a progressão narrativa. O episódio intermediário é uma história de vingança, envolvendo um passado bastante familiar ao espectador pela referência a “Rocky IV”. O filme de 2023 cria um passado para Adonis, mas não se preocupa em tornar mais complexo o seu discurso.

Depois de chegar ao topo da sua carreira, Adonis se aposenta e está pronto para se dedicar à família e trabalhar apenas nos bastidores do boxe. Sua vida se complica quando reaparece Damian, um amigo preso há dezoito anos e que o vê tendo a vida que considera que deveria ter tido.

(© Warner Bros. / Divulgação)

É interessante que o roteiro de Keenan Coogler e Zach Baylin pense em criar, a partir do presente, um passado que poderia ter ocorrido em favor do antagonista, mas que ele percebe que ocorreu em favor do protagonista. Para o vilão, essa vida não apenas poderia, mas deveria ter ocorrido (por isso a pergunta dirigida a Bianca sobre a sensação de ouvir outra pessoa cantando a sua música, ele se identifica com ela). Ao invés de lidar com fatos do pretérito diegético, como os filmes anteriores, o texto então problematiza a própria noção de pretérito, ressaltando o quão relativa ela consegue ser. Assim, enquanto Adonis reconhece com pesar a lembrança de ser nocauteado por Damian, a resposta de Damian é lembrar-se de ajudá-lo a se levantar. O antagonista enxerga o que se passou, antes de ser preso, com enorme saudosismo, ao passo que o protagonista quer deliberadamente esquecer o que ocorreu antes de sua nova vida como boxeador. O roteiro acaba trabalhando com as ideias de culpa e arrependimento, defendendo que, em alguns casos, é necessário que a pessoa se perdoe em relação ao que já ocorreu e não pode ser mudado, focando no presente.

O script consegue ser sagaz com essa abordagem, mas poderia ser muito mais inteligente se tornasse suas temáticas mais complexas. Por exemplo, o trauma de Adonis envolvendo Leon existe apenas para justificar o afastamento entre as duas personagens principais, não sendo trabalhado nem claramente superado pelo herói. Além disso, na criação dos filhos, no confronto entre Adonis e Bianca (Tessa Thompson, pouco relevante desta vez), nada se desenvolve a respeito de Amara (Mila David-Kent), a principal interessada (o bullying poderia ser resultado de racismo, por exemplo). O que mais deixa a desejar, ainda, é a perda da oportunidade de abordar o racismo no sistema de combate à criminalidade: Damian poderia ter sido vítima dos policiais ou de um erro judiciário, mas nada disso acontece.

Em seu primeiro trabalho na direção, Michael B. Jordan não arrisca e faz como o (também inexperiente) Steven Caple Jr. em “Creed II”: repetir os recursos estilísticos de Ryan Coogler, diretor do primeiro filme. Não são poucos os elementos que simulam veracidade, para fins publicitários (Adonis como garoto-propaganda em outdoor, transmissão por um canal real) quanto diegéticos (os comentaristas em voice over). Na prática, os melhores momentos de “Creed III” sejam reciclagem do que já foi visto, seja na direção de Coogler, seja na franquia “Rocky”. São eles a (duradoura) sequência elíptica de treinos, musicalmente empolgante (a trilha, por sinal, é excelente) e a (também longa) sequência da luta. As ferramentas são as mesmas de sempre: o super slow motion (por vezes, com suor e sangue jorrando), a persistência depois de parecer derrotado (Jordan inclusive admite a inspiração no anime “Dragon Ball Z”, marcado por batalhas homéricas e com inacreditável superação), o emprego de um símbolo físico para traduzir a vitória sobre si mesmo (para Rocky, a escadaria; para Adonis, uma trilha que o leva, literalmente, ao topo) e entradas espetaculares para chegar ao ringue. No último caso, Jordan contrapõe muito bem Adonis a Damian (Jonathan Majors, convincente em igual medida como amigo agradecido e como arrogante rancoroso, ignorando-se o modo brusco como essa transição ocorre): o primeiro é filmado em spinning shot e bem recebido pelo público, já o segundo não encontra a mesma recepção calorosa da plateia.

O antagonismo entre os dois é representado por uma dualidade constante: Adonis com fantasia de sapo brincando com a filha enquanto toca música tranquila, Damian sozinho de capuz no ônibus com música sombria; aquele recebe este em sua luxuosa residência na companhia da família, mas é recebido por ele ao ar livre e cercado de desconhecidos; o belíssimo plano em que, no mesmo recinto, são filmados de costas separados por uma parede. De negativo, subsiste o fato de que os acertos são herança mecânica dos trabalhos anteriores (por exemplo, os enquadramentos fechados, que dão maior impacto aos golpes e aproximam as personagens do espectador), havendo ainda erros autônomos, como o trabalho de foco, que é muito ruim, com diversos planos desfocados (como na cena em que Adonis fica no chão do ringue enquanto Bianca e Amara correm ao seu redor). Com mais uma atuação de alto nível, Michael B. Jordan deixa um bom legado por participar do projeto e protagonizá-lo – não tanto, contudo, como diretor.