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ENTREVISTA: Gabriela Boeri, codiretora e atriz de “La Parle”

Filme acompanha recortes de uma viagem feita entre quatro amigos na Borgonha, navegando através dos limites entre a ficção e a realidade, e entrou em cartaz no dia 29 de Junho. Clique aqui para ler a nossa crítica sem spoilers.

Gabriela Boeri, codiretora do longa do La Parle, fala sobre as inspirações para o projeto, o processo da direção entre quatro pessoas, como a residência artística feita na Borgonha com o diretor Claude Lelouch levou à realização da obra e a atual distribuição do projeto dentro da cena do cinema brasileiro atual.

Pergunta: Você poderia falar um pouco sobre a sua trajetória?

Gabriela Boeri: Bem, eu formei na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) em Cinema, em 2014, e comecei trabalhando com produção executiva. Paralelo a isso eu fui fazendo outros cursos e entendendo que eu queria fazer direção, me aproximando dessa área e também migrando pra assistência de direção. Quando eu tava filmando meu último curta, “Dois, que eu codirigi com a Letícia Rheingantz, eu recebi a notícia sobre a residência artística do Claude Leloch, diretor francês que eu sempre tinha admirado. Era um projeto relativamente novo e eu acabei participando na segunda turma, mas antes passei um ano me preparando, entendendo que essa podia ser uma forma de realmente mergulhar nessa área.Lá eu pude não só desenvolver esse projeto como também entender onde era o meu lugar no cinema.

Pergunta: Como foi fazer essa residência com o Claude Leloch?

Gabriela Boeri: Desde a fase da entrevista o projeto me fascinou demais, porque ali eu tinha essa chance de mergulhar no cinema francês, junto do Claude. A ideia da residência é que a gente desenvolva um projeto e acompanhe a realização de um dele. O projeto que eu desenvolvi era o de um curta, junto com o La Parle, que surgiu depois, e chegando lá ele deu a notícia de que, em homenagem aos 50 anos do filme Um Homem e Uma Mulher, a gente iria acompanhar a realização de Os Melhores Anos de Uma Vida. E isso foi fundamental pra gente entender não só a nossa visão para o cinema como também compreender o funcionamento de um set em geral, dentro da lógica de mercado, e principalmente o set de um grande artista e mais autoral.

Pergunta: De onde surgiu o La Parle?

Gabriela Boeri: La Parle surgiu de um processo de experimentação muito grande e que era bastante estimulada dentro da residência. Eu já tinha trabalhado por grandes produtoras e sets profissionais e não entendia o que o Leloch insistia em relação a “pegar as coisas na mão”. Só depois eu comecei a compreender que ele se referia, entre outras coisas, à própria câmera. Ele queria que a gente explorasse esse instrumento, que a gente entendesse um lado mais artesanal do cinema, de ir investigando e valorizando esse amor tão presente no cinema amador. E foi nesse processo que eu encontrei os outros realizadores do filme, a Fanny (Ledoux-Boldini), o Simon (Boulier) e o Kevin (Vanstaen). A gente tava trabalhando na produção do filme do Leloch e eles tinham cursado a residência na turma anterior, mas ela permite que você continue frequentando o curso. Foi durante uns testes de câmera, realizado no próprio espaço da residência, lá na Borgonha, próprio e bastante equipado pra uma pré-produção, que a gente filmou uma cena com várias câmeras diferentes, incluindo o IPHONE. Depois a gente exibiu essas filmagens e comparou as imagens, não com um intuito de, por exemplo, entender as falhas do IPHONE em comparação com as outras câmeras, mas sim entender ele como linguagem. O Leloch propôs que essas “falhas” que a câmera do celular pode trazer podem também emocionar, podem propor, através dos ruídos, uma outra forma de interação com o espectador. Essa provocação foi o primeiro passo para iniciarmos o processo, resolvemos que queríamos fazer algo juntos, usando esse objeto, e apresentamos a ideia para ele. A gente idealizou uma forma de organização entre nós quatro, principalmente porque todos iriam acumular várias funções, e esquematizamos um plano de três exibições dos materiais que iriam sendo captados, em torno das quais o filme foi se transformando, inclusive no roteiro.

Pergunta: Como foi misturar a realidade e a ficção no projeto?

Gabriela Boeri: É muito interessante pensar nesses ruídos como outra forma de pensar o cinema, uma forma de lembrar que o que estamos vendo são imagens, por mais que a gente normalize certos códigos conforme o nosso contato com eles. Surge ali uma nova forma de interação com a imagem, nesse encontro entre o real e o lembrete de que estamos vendo uma reprodução. Pensando o nosso funcionamento, nós quatro tivemos que fazer muitos acordos, não só pra igualar a voz que cada um teria dentro do projeto, mas também pra poder estabelecer o que cada um estava disposto a compartilhar no filme. Essa negociação foi o que fez funcionar, junto com o ritmo que foi criado. O La Parle é um projeto que exigia permitir que a vida andasse, ainda que a gente não pudesse deixar passar muito tempo. Então nós partimos de conflitos reais, escolhidos das nossas vidas, e a partir daí isso foi se transformando em ficção, fomos escrevendo em cima disso e se propondo a viver elas entre os membros da equipe. Isso exigia uma coreografia bastante interessante entre a gente, na forma como revezávamos entre a frente e o atrás da câmera, como pensávamos a interação em espaços públicos, e aí voltávamos pra ilha de edição, que eventualmente seria também acompanhada pela montadora, Alice Furtado. Assim podíamos perceber que rumos o projeto estava tomando e entender quais seriam os limites de cada um. A cena da consulta, por exemplo, surgiu como algo inesperado e que a Fanny percebeu que fazia sentido entrar no filme. Ela nos permitiu escrever em cima disso e por acaso, no dia, surgiu aquele elemento “mágico” que, sem querer dar spoilers, pontua o final do filme. O Leloch sempre falou da importância de se deixar o acaso atravessar os projetos. É engraçado que, indo pra lá, eu pensava que ia interagir com uma forma muito mais rígida de realização, quando na verdade existia ali uma ideia muito forte de maleabilidade. Ele contava também que sempre ia o mais cedo possível pro set, pra sentir a atmosfera de cada dia e deixar, possivelmente, esse dia interferir na maneira como a cena havia sido pensada originalmente. E acho que uma parte fundamental do processo foi acreditar naquilo que a gente tava fazendo, dentro dessa ideia de um cinema mais “manual”. No começo a gente tinha muita incerteza com aquilo que era captado, não tínhamos ideia de alguns dos caminhos que acabaríamos tomando, do que ele se tornaria antes de se tornar uma coprodução com o Brasil, então pra que esse diálogo funcionasse foi necessária muita crença na própria obra.

Pergunta: Como foi codirigir com mais três pessoas?

Gabriela Boeri: O início do processo foi muito difícil, e eu nunca me imaginei fazendo isso na residência, achei que tinha ido pra lá pra começar a me encontrar mais pessoalmente, mas a gente conseguiu encontrar uma boa organização do trabalho e encontrando as principais habilidades e dificuldades de cada um dos quatro. Disso, pensamos em como cada um poderia se levantar, complementar essas questões do outro. Então por exemplo, o Kevin, que tem um enfoque bastante técnico, fez uma pequena oficina de captação de som, pra que a gente pudesse ficar preparado pra qualquer coisa capaz de acontecer. Mas por mais que o La Parle tenha a sua unidade, também mantivemos claro que as nossas diferenças contribuam muito pro processo, e dependendo de quem estava por trás da câmera, o olhar de direção era outro. E isso se refletiu especialmente na direção de atores, já que ninguém ali tinha atuado antes. Então essa coreografia, essa troca, exigiu bastante preparação, e nas dinâmicas da ilha de edição todos podiam opinar e tivemos assim uma base muito respeitosa e segura pro momento em que decidimos qual seria o corte final do filme.

Pergunta: Que processo de direção de atores vocês fizeram entre vocês?

Gabriela Boeri: É realmente muito curioso como a câmera muda o ar entre a lente e o corpo, transforma a nossa maneira de agir e se comportar. E nisso, acho especialmente interessante pensar na observação das respostas do público. A residência era bastante livre, mas entre os conselhos do Leloch uma das sugestões era a de que assistíssemos um filme por dia. E lá dentro do espaço havia uma sala de cinema, que atuava como um cineclube. Eram feitas exibições noturnas abertas ao público, mas nós tínhamos também a oportunidade de assistir os filmes durante a tarde. Isso ajudava na observação dos aspectos mais técnicos, pensar de que maneira eles nos influenciavam e eram pertinentes pro nosso processo de criação. Mas o Leloch frisava especialmente a importância de se assistir com o público e ficar observando as suas reações aos filmes, era importante comparar essas duas formas de absorção das obras, até porque, por mais nichado que seja a parcela que desejamos alcançar, se o filme não encontra diálogo com ninguém, ele acaba. E nisso ele propunha a necessidade de trabalhar a atuação, não pensando um aprimoramento nesse campo mas sim uma forma de entender o que você, como realizador, estaria propondo para o seu público. Como estrangeira, durante muito tempo eu ainda evitei essa ideia, mas esse espaço de codireção acabou propiciando esse lugar da atuação, de se entregar para uma experiência nova e entender de outra maneira como construir as cenas. A partir disso a gente ia se auxiliando e propondo uma variedade de dinâmicas.

Pergunta: De que maneira você contornou os desafios de ser a única brasileira nesse processo?

Gabriela Boeri: Eu sempre tive claro pra mim que eu fui para voltar. No começo era ainda intimidador, especialmente por conta da língua, mas as pessoas sempre admiraram essa minha colocação em um lugar de vulnerabilidade e foram muito respeitosas. Mais do que eu tentar falar, sempre souberam, também, me ouvir, entender que eu criava algumas palavras misturando o português e o francês, até que eu entendi que isso cabia também no processo criativo. Então isso me estimulou bastante a trazer alguma brasilidade para o La Parle, fazer esse intercâmbio e, agora, voltar pra cá, dar continuidade a isso no Brasil. Essa troca internacional também vai estar presente no projeto de curta que eu desenvolvi lá, em paralelo, em que eu quero contar a história do meu avô português. Eu fui autorizada a filmar não lá, na Borgonha, mas na terra onde ele nasceu, e essa produção ainda vai acontecer.

Pergunta: Como tem sido o lançamento e a distribuição do filme?

Gabriela Boeri: O fato do filme ter se tornado uma coprodução com o Brasil ajudou bastante, foi algo que me fez me sentir em casa durante uma trajetória em que me senti muito estrangeira. Isso me trouxe, inclusive, de volta pro Brasil, e os coprodutores Fernando Sapelli e Carolina Heller conseguiram viabilizar a finalização do filme aqui, o que me deu muita segurança para os rumos finais do projeto. E então o interesse da Pandora Filmes estimulou a chegada do filme em vários festivais, e eu tenho percebido que as pessoas entendem o projeto como uma realização muito sincera, muito genuína. Eu tenho visto um boca a boca muito bonito, também, dentro de um tempo tão acelerado, nem que isso ajude com uma ou outra pessoa que ainda não conhecia o filme. Estou muito feliz com o resultado, ainda mais pensando em uma produção que tem esse viés mais manual, em meio a tantos filmes feitos dentro de uma lógica mais industrial. Eu sinto que lá atrás, o Leloch conseguiu apaziguar um medo muito grande de jovens que sonhavam bastante alto, ajudou a manter viva uma chama dentro de uma área tão cara, muitas vezes tão difícil.

Pergunta: O que você pensa para os seus próximos projetos?

Gabriela Boeri: Eu acredito que esse curta sobre o meu avô vai servir bastante pra continuar o meu processo de busca pela minha voz, e também tenho desenvolvido outros dois projetos, um de documentário e outro de ficção, fora um clipe que vou lançar logo depois do lançamento do La Parle, de uma cantora chamada Nina Maia.

Pergunta: Tem alguma mensagem sobre a realização do cinema no Brasil que você gostaria de deixar?

Gabriela Boeri: Eu gosto de pensar que a ideia de ter ido para lá sabendo que eu queria voltar foi se tornando cada vez mais clara durante o processo, apesar de todas as dificuldades que enfrentamos recentemente, dentro do contexto da pandemia. E eu sinto que uma das bases para a possível consolidação de novos talentos está no cenário dos curtas-metragem, eu tenho um apego muito forte por essa cena, que nunca quero abandonar. Então eu tenho muita vontade de resgatar um antigo projeto, que comecei a idealizar, que conectaria diversos realizadores, curta metragistas brasileiros, especialmente em um país em que o curta é tão respeitado. Sinto que essa cena interna não é tão observada quanto deveria, e que as vezes a distribuição externa dos curtas é muito mais pensada do que a solidificação de uma base em primeiro lugar. Trabalhar uma consciência do valor disso é algo muito importante!

La Parle está em cartaz desde 29 de Junho. O filme terá uma exibição especial no domingo (09), no Cineclube Cortina, em São Paulo, e que será seguida de um debate com Gabriela e com a doutoranda em audiovisual e professora, também formada na FAAP, Mariana Lucas Setúbal. Ele está sendo exibido em dez cidades brasileiras.

Serviço:

Site: http://claraluzfilmes.com.br/la-parle-br

Trailer: https://youtu.be/GlKX-iFiDK4