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“EXORCISMO SAGRADO” – Pá de cal

Uma primeira observação que precisa ser feita sobre EXORCISMO SAGRADO é o repúdio a uma cena específica, ao final. Trata-se de um momento em que um padre compara homossexuais a ladrões e mentirosos, colocando-os no mesmo patamar valorativo. É verdade que a Igreja Católica condena a homossexualidade (assim como o divórcio, por exemplo), mesmo que o Papa Francisco dê declarações consideravelmente progressistas. Ou seja, a cena é verossímil (em um filme pouco verossímil, diga-se). Porém, a fala do padre não precisava entrar na dispensável polêmica do quão retrógrado e discriminatório o catolicismo pode ser.

Durante um ritual de exorcismo, o padre Peter, ao ser possuído, comete um sacrilégio. Dezoito anos depois, ele ainda sofre em razão do seu pecado, tendo ainda de enfrentar o mesmo demônio e encarar as consequências dos seus atos.

(© Imagem Filmes / Divulgação)

O roteiro de Santiago Fernández Calvete, escrito com o diretor Alejandro Hidalgo, comete poucas falhas para arquitetar a sua trama. As peças se encaixam bem, como as gravações de Peter, que têm função narrativa relevante, e o flashback da cena do pecado do protagonista, que é precocemente interrompida para provocar mistério. Não que não existam falhas – por que Michael, que não aceitava um exorcismo sem os ritos adequados, passou a pensar de modo diferente? -, mas é um texto respeitável.

Outro aspecto positivo do script está em seu subtexto. Primeiramente, ao fazer com que o protagonista enfrente um dilema ético: cumprir o dever versus continuar praticando atos de altruísmo. É o confronto entre a ética deontológica e a teleológica: se Peter focar no que deve fazer, o caminho é de tristes consequências para ele e para quem o cerca; se ele decidir por priorizar as consequências, porém, a solução é benéfica aos envolvidos em prejuízo do que é certo a se fazer.

Além disso, o subtexto encaixa no dilema ético uma crítica nada velada à burocracia da Igreja Católica (e seu tradicionalismo) – e, em interpretação mais ampla, à burocracia em geral. A ideia entra em contradição com a cena mencionada no início deste texto, todavia ela tem valor pelo mero fato de provocar uma reflexão que, na verdade, recai na escolha ética. O fato de haver uma contradição não surpreende quando se considera a bagunçada tese que leva Peter ao clímax e constitui a explicação do título original do longa (“The exorcism of God”, em tradição livre, “O exorcismo de Deus”).

Naquele momento, contudo, já está estabelecida uma personagem que faz toda a diferença na trama: o padre Michael. Joseph Marcell é divertidíssimo como um sacerdote movido a mezcal e cuja maior virtude é não levar nada a sério. Na cena do exorcismo de Camila (Evelia Di Gennaro), a eloquência com que ele pratica seus atos (na frente de crianças, inclusive) é de um exagero que o torna caricato – mas, ainda assim, simpático. Essa caricatura de padre combina com algumas de suas falas, certamente não esperadas de um eclesiástico, tais como “que porra é essa, Michael?”, “não sei se é melhor usar água benta ou alvejante” e “mesmo se você fosse um demônio, seria do mais fajuto”. O resultado é uma comédia acidental que, de tão alheia ao universo diegético (já que a conduta de Michael é bastante inesperada, para dizer o mínimo), o torna mais palatável.

Em outras palavras, a seriedade de Peter (Will Beinbrink) é coerente com o terror do filme, mas não é criativo e não tem brilho algum, diversamente do comportamento heterodoxo de Michael, funcional por ser inesperado e tão surreal que se torna cômico (analogamente ao “é tão ruim que chega a ser bom”). É claro que não era essa a intenção, porém “Exorcismo sagrado” é muito melhor aproveitado se encarado, quando possível, dessa forma. As cenas de terror, além de não impressionarem (a maquiagem é boa, mas longe do extraordinário), são por vezes desnecessárias, como aquelas que envolvem estátuas sem relação alguma com a trama principal (tornando-se, assim, vazias e desinteressantes).

Alia-se à singeleza do terror a inabilidade de Hidalgo em criar uma atmosfera apavorante, valendo-se de jump scares idiotas (uma pessoa esbarrando em Peter no escuro, nos primeiros minutos) ou esperados (a maioria). Não existe uma trilha musical capaz de moldar o clima necessário, há muitos gritos e pouca emoção verdadeira. O primeiro exorcismo é uma cena razoável, mas o filme se perde em sua própria deterioração. Certamente referência a “O exorcista” (clique aqui para ler a nossa crítica), em um plano idêntico ao do clássico, não salva a obra de um desastre.

Quanto à desprezível cena mencionada no primeiro parágrafo, ela constitui uma pá de cal. Um filme que poderia receber duas estrelas acaba tendo apenas uma – que vai exclusivamente pelo trabalho inusitado de Joseph Marcell.