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“FAÇA A COISA CERTA” – Amor e ódio

A imagem de Radio Raheem com o formato do soco inglês revelando as palavras “amor” e “ódio” é expressiva por si só. A decupagem, a postura do ator e a composição visual do objeto contribuem para a força do momento. Além disso, o encontro dos termos, como o personagem faz encostando as mãos, é um princípio dramatúrgico e estilístico que norteia FAÇA A COISA CERTA. Em uma das áreas mais pobres de Nova York, a comunidade local transita pelos simbolismos que a relação entre amor e ódio pode ter, sem, necessariamente, transmitir os sentidos mais óbvios.

(© 40 Acres & A Mule Filmworks / Divulgação)

Bedford-Stuyvesant é o bairro no Brooklyn onde a trama se desenvolve majoritariamente durante um dia de temperatura muito alta. O local serve de moradia para pessoas de diferentes etnias que convivem nem sempre de maneira tão amistosa. Sal é um ítalo-americano dono de uma pizzaria, que mantém o negócio com os filhos Vito e Pino e tem como funcionário Mookie. Sal decora o estabelecimento com fotografias de ídolos ítalo-americanos no cinema e no esporte, o que desagrada Buggin’ Out, que reclama do fato de não haver negros na “Hall da Fama”. A exigência de Buggin’ Out para que se mude a decoração é o ponto de partida para conflitos turbulentos na área.

Em sua carreira, o diretor Spike Lee já trabalhou a questão racial em diferentes filmes. “Malcolm X“, “Infiltrado na Klan” e “Destacamento Blood” são títulos que fortalecem as opções políticas do artista. Em 1989, ele conta história de um bairro nova-iorquino pela perspectiva da pluralidade de uma comunidade multiétnica. Na pizzaria, Sal se orgulha de acompanhar o crescimento de tantas pessoas ali enquanto faz comida, Pino odeia trabalhar cercado por pessoas negras e deseja se mudar para um bairro de origem italiana e Vito tem um bom relacionamento com os negros da área, sobretudo Mookie. Na calçada da frente, um casal oriental trabalha com uma loja de conveniência e sofre com o preconceito de vários moradores (o sotaque, os olhos puxados…). E sem um lugar definido, latinos aparecem nas ruas ouvindo música e cultivando laços de solidariedade. Embora Vito pudesse ser visto como uma espécie de vilão, o cineasta (também roteirista) evita maniqueísmos e e proporciona a cada figura cenas em que podem revelar traços diversos de suas personalidades.

Pluralidade é palavra que também define a abordagem dos personagens negros. Todos eles passeiam por situações que expõem o que têm de melhor e pior. Mookie, vivido pelo próprio Spike Lee, é o entregador de pizza que aproveita todo o momento possível para se afastar do trabalho. Tina, concebida por Rosie Perez, é a namorada de Mookie que cobra dele mais responsabilidade e presença na criação do filho. Mister Señor Love Daddy, interpretado por Samuel L. Jackson, é um radialista desenvolto que preenche o dia com uma trilha sonora expressiva. Buggin’ Out, vivido por Giancarlo Esposito, é o ativista local que decide convencer todos que puder a boicotar a pizzaria enquanto o “Hall da Fama” não ter figuras negras. Mother Sister, interpretada por Ruby Dee, é a senhora que muitos respeitam e pedem conselhos enquanto observa a rua da janela de casa. O Prefeito, concebido por Ossie Davis, é um homem que tem problemas com bebida, mas dentro da sua lucidez tenta ajudar todos ao seu redor. E Radio Raheem, vivido por Bill Nunn, é um homem que anda pelas ruas ouvindo música alta de seu enorme rádio.

O desenvolvimento dos personagens não é a única forma de a narrativa mostrar as interações complexas na comunidade. Spike Lee cria sequências bastante evocativas sem depender de diálogos ou de eventos explícitos da trama. Na abertura, a performance da canção “Fight the Power” de Public Enemy introduz a postura combativa que fará parte de toda a obra. Em outras passagens, a câmera destaca os desenhos de bandeiras de Porto Rico, Cuba, Jamaica e Angola em uma parede, países de influência latina e negra, uma questão vital para a dinâmica no bairro. Em outras cenas, menções a personalidades artísticas e políticas, como os Panteras Negras, Malcolm X, Martin Luther King Jr., Aretha Franklin, Ray Charles e vários outras, ganham o primeiro plano e sustentam as visões de mundo dos moradores negros. O cineasta também valoriza a intensidade dramática de certos conflitos a partir da decupagem, como os desentendimentos entre os ítalo-americanos e os negros, filmados em contra-plongée para dar uma sensação de poder e de modo a sugerir que os personagens quebram a quarta parede e falam com o público diretamente.

Conforme o tempo passa, as possibilidades criativas de trabalhar a relação entre amor e ódio se encaminham para sentidos mais simbólicos do que literais. Os dois sentimentos são tomados como símbolos de concepções, atitudes e abordagens distintas e, por vezes, contraditórias. Amor e ódio existem no bairro do Brooklyn, porém devem ser compreendidos dentro das complexidades, sutilezas e nuances de um contexto social que não se explica com respostas sintéticas. Spike Lee desenvolve calmamente os personagens, o cenário e as relações interpessoais em uma linha de tensão que o espectador poderia esperar que se romperia rapidamente. Entretanto, o cineasta primeiramente apresenta exemplos de harmonia e até de diversão quando um hidrante é aberto para refrescar os transeuntes em um dia tão quente e três amigos conversam espontaneamente sobre o tempo e sexo. Com o tempo, o risco de uma explosão de caos e violência se acentua, seja porque brigas entre os moradores quase acontecem, seja porque a ronda da polícia é feita em tom ameaçador.

Em um dia que chega aos 37º e as relações conflituosas se avolumam, a metáfora do caldeirão em ebulição é quase inevitável. A iluminação de tons vibrantes e as performances propositalmente acaloradas dos atores retratam a iminência de um conflito de grandes proporções, uma sensação de tragédia anunciada que é preparada sem pressa por Spike Lee para que quando aconteça seja uma descarga de energia que incomode, revolte e gere reflexões. Então, quando enfim a violência explode, o cineasta a filma para que se torne uma sequência intensa e grandiosa que até possa partir de ações individuais, mas não se restringe a uma sentido puramente individualista. Sal, Mookie, Pino, Buggin’ Out, Radio Raheem, a pizzaria e os demais personagens envolvidos extravasam suas própria individualidade e representam preconceitos enraizados socialmente, a ira coletiva de um grupo historicamente violentado e a violência de instituições baseadas em um poder racista. Todo o desenrolar dos acontecimentos e a abordagem estilística preservam a ideia de que os indivíduos não seriam mocinhos ou vilões, como pode ser evidenciada pelo surgimento mais uma vez da canção “Fight the Power“.

Faça a coisa certa” transcorre durante praticamente 24 horas. Em seu tempo diegético, o calor fortíssimo, a diversidade étnica e as relações contraditórias entre os moradores simbolizaram o que pode acontecer em um dia em Bedford-Stuyvesnt. No desfecho, um novo dia se inicia ainda sentindo os efeitos trágicos e violentos do anterior. Anuncia-se que as altas temperaturas continuarão. Percebem-se mais atritos entre os personagens. Um ciclo se reinicia. Nesse sentido, Spike Lee evita uma culpabilização superficial que se limitaria a definir os vilões e as soluções voltadas contra os vilões isoladamente. É nítida a diferença no uso da violência e as proporções incomparáveis que tomaram. Não se relativiza quem, de fato, deveria ser punido. Porém, é preciso também mirar a atenção para o problema coletivo, algo que o diretor faz ao discutir a construção social da violência, do preconceito e da intolerância. É imperativo também olhar para a questão com o discernimento que as contradições na relação entre amor e ódio abrem. No filme, não são sentimentos, mas símbolos de facetas diferentes para um mesmo tema, como Martin Luther King Jr. e Malcolm X foram.