“HALLOWEEN KILLS: O TERROR CONTINUA” – Conceito não é filme
Uma franquia com a longevidade para chegar na sua mais recente sequência quarenta e três anos depois do original não existe sem duas coisas: ao menos um grande filme, que marque época ou que marque o cinema, e algo passível de ser explorado repetidamente, algo vendável, direto, imediato. É geralmente o caso que essas duas coisas não são exatamente compatíveis, isso é, que aquilo que dá potencial a uma série incansável de filmes não é exatamente o que interessa a grande obra que a originou. É indubitavelmente o caso de Halloween, que com “HALLOWEEN KILLS: O TERROR CONTINUA” chega a sua décima segunda aparição nas telas.
O produto vendável é a inconfundível máscara branca de Michael Myers, todos devem imaginar. O grande filme nesse caso, é claro, é o original de 1978, clássico de John Carpenter. Há quem diga, e com muito motivo para isso, que o antológico “Halloween III” é outro. Fora eles, a franquia é notoriamente desordenada, cheia de continuidades retroativas, mudanças de tom e as tentativas de justifica-las. Todas as sequencias, a sua maneira e com as estratégias de seus tempos, tentaram interpretar as alusões e os símbolos criados por Carpenter, em especial a misteriosa figura de seu grande vilão.
A proposta de David Gordon Green, quando foi convocado para trazer Michael Myers de volta as telas após quase uma década, foi facilmente aceita por grande parte dos fãs: consistiria numa sequencia direita do original de 1978, ignorando “Halloween II” e sua polêmica e inescapável revelação acerca dos laços familiares entre Laurie e Michael (revelação essa abraçada por todas as sequencias até então). A escolha de atrela-los de tal maneira, fazendo com que a obsessão de Michael fosse direcionada e mais psicologizada, de fato removia a casualidade do horror, bem como a noção de um mal que transcendia o humano. A intenção já virou clichê nessa era hollywoodiana de remakes e sequências e retornos nostálgicos aos clássicos dos anos 70 e 80. Com certo ar de superioridade, produtores e diretores posam como salvadores da seriedade, dos “filmes inteligentes e com conteúdo”, do “bom cinema”. “O despertar da Força” queria ser Star Wars “de verdade”, e não aquela baboseira do começo dos anos 2000, um retorno às origens; o “Halloween” de Green teve uma vontade parecida, assim como o “A lenda de Candyman” de Nia DaCosta, para citar outro exemplo recente do gênero (clique aqui e confira a nossa crítica).
Os equívocos de “Halloween Kills” são precisamente os mesmos de seu antecessor, que podem ser resumidos em um único e grande problema: Green, os outros envolvidos no projeto, e grande parte da indústria do cinema de horror nos grandes estúdios hoje em dia, parecem equiparar conceito e obra, ideia e realização. É evidente a devoção que ambos os filmes têm ao clássico de Carpenter, e é evidente também sua tentativa de recuperar seus temas originais, suas preocupações mais íntimas. Mas tratar Michael, novamente, como epítome do mal, ou tratar, novamente, a conexão entre ele e Laurie como uma força quase metafisica e não racional, são questões conceituais e não fílmicas. Filmar esses conceitos é de certa forma uma definição do que é fazer cinema, mas Green se contém com reitera-los. A ideia e o mito do Myers de Carpenter são encarnados em seu filme de a todo momento. O “Halloween” original é, por um lado, a história de seu batismo, de personagens encontrando nomes para a figura que veem (Michael, Pure Evil, The Shape…). Seu corpo só desaparece inesquecivelmente nos momentos finais quando Loomis e Laurie concordam que aquele era o Boogyman, algo para além de Michael, e assim ele sobrevive.
Mas construções desse tipo, sejam de história ou imagem, fogem as habilidades de Green. Tudo em seus filmes é dependente do trabalho de Carpenter, e não é à toa que grande parte das grandes sequencias em ambos os filmes são frutos de reencenações de obras passadas, ou ao retorno de personagens antigos, ou ao sintomático flashback para aquela noite de 1978. E mesmo tentando se livrar do fardo narrativo de quarenta anos de sequências, Green cai em reiterações de dezenas de ideias desses filmes também: Laurie presa ao leito do hospital como em “Halloween II”, tanto o de 81 quanto o de 2009, e em “Ressurection”; a figura do pequeno Tommy crescida, determinado a vencer Michael, como em “Curse of Michael Myers”; e mais enfaticamente, a ideia de uma Haddonfield traumatizada, que se une para linchar o monstro que a aterroriza, como no final do subestimado “Halloween 4”.
Quando sobram momentos para criação genuína por parte de Green, sua falta de estilo se torna ainda mais evidente. No caso do primeiro filme, em 2018, essas lacunas eram mais narrativas, e o estudo de uma Laurie traumatizada e a beira da paranoia era minimamente interessante; aqui, num filme mais de set pieces do que de construção de personagens, Green precisa lidar com a figura de Michael em cena com mais frequência, e de forma mais frontal. A sequência de sua fuga da casa em chamas, ainda no início do filme, é uma folha em branco na qual Green só consegue rabiscar ação desprovida de qualquer horror. Há muita eficiência no uso de efeitos práticos, da iluminação agressiva, da trilha pulsante, mas é tudo eficiente como um prato de arroz e feijão sem sal é eficiente para alimentar. Seu Michael Myers é o menos aterrorizante desde “H20”.
Antes destes, em 2007, o remake de Rob Zombie causou certo alvoroço quando foi lançado, mais ainda quando sua sequencia veio em 2009. Eles partilham com os filmes de Green aquela reverencia citada, mas Zombie ao menos ouviu o conselho de Carpenter que lhe disse para tornar o filme seu. Ambos filmam novamente o momento em que uma das vítimas de Michael o vê pela janela, do outro lado da rua; ambos re-filmam o assassinato da babá e seu namorado, e a sobrevivência da criança. Mas assistindo aos filmes de Zombie, ame-os ou odeie-os, em momento algum paira a sensação de que o que se vê é mera reprodução. Os acontecimentos são os mesmos, mas não as cenas. Zombie ou compreende os conceitos e os filma de outra forma, ou os abandona em prol de sua visão. Seu “Halloween”, e em especial seu “Halloween II“, afinal, são sobre outra coisa. Não se trata de um mal transcendental, mas de um mal profundamente humano, causado e propagado pelo humano. O horror de seu Michael, o mais aterrorizante desde o de Carpenter, está na imensidão de seu corpo, suas mãos e braços gigantescos, na agressividade e brutalidade de suas ações enquanto homem. “Halloween” (2018) e “Halloween Kills” têm a pretensão de serem sobre exatamente a mesma coisa que o original de 1978, e de certa forma são, de certo tentam ser. E dado que Green não é um décimo do cineasta que Carpenter é, isso é a maior garantia de seu esquecimento.