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“HIGIENE SOCIAL” – Protagonista blasé, espectador blasé [45 MICSP]

O protagonista de HIGIENE SOCIAL poderia, segundo dizem, ser um escritor consagrado, mas ele prefere uma vida mais modesta, sobrevivendo à margem da sociedade. Não é sem razão que outras personagens criticam sua postura blasé diante da vida. Também não será sem razão se o espectador adotar a mesma postura após assistir ao longa.

Antonin está acostumado a se livrar dos seus problemas usando seu charme e sua habilidade com as palavras. Porém, sua conversa não é fácil quando encontra cinco mulheres importantes em sua vida – sua irmã, sua esposa, a mulher que deseja, uma funcionária do Ministério do Trabalho e uma vítima dos seus atos.

Trata-se de uma obra bastante autoral do diretor e roteirista Denis Côté, um filme com um quê de experimental na fuga a modelos narrativos e nas opções de linguagem cinematográfica. Em tempos de distanciamento social em razão da pandemia de covid-19, as personagens mantêm entre si uma distância segura, mas além disso elas se mexem pouco e geralmente não fazem contato visual mesmo enquanto dialogam (Cassiopée e Rosa estão quase de costas para Antonin). A câmera de Côté é quase integralmente estática; a filmagem, em planos abertos – exceção feita ao acompanhamento de Aurore, da qual a câmera se aproxima e acompanha a sua movimentação.

A linguagem se assemelha à de “Malmkrog” (clique aqui para ler a nossa crítica), inclusive pelo figurino de época. Entretanto, “Higiene social” não se limita às barreiras do tempo, de modo que, enquanto algumas personagens adotam vestuário compatível com séculos pretéritos (é o caso de Églantine e Cassiopée), outras (Aurore, em especial) se vestem como em tempos atuais. Enquanto as personagens femininas usam cores saturadas (Rosa de rosa, Aurore de vermelho, Solveig de marsala etc.), Antonin praticamente se limita ao preto e ao branco, mostrando o quão diferente ele é das mulheres que o cercam. Quanto ao cenário, por outro lado, estão todos sujeitos ao mesmo ambiente natural de gramados amplos e regiões arvoradas, o que harmoniza com os sons diegéticos (pássaros, vento etc.).

Com tantos recursos estilísticos, os diálogos decepcionam e os tornam vazios. É possível perceber características essenciais das personagens: Solveig (Larissa Corriveau) se preocupa com o irmão, mas não se furta a censurá-lo pela atual rotina enquanto se deleita com o próprio sucesso afetivo; Églantine (Evelyne Rompré) não enxerga incompatibilidade entre amar o marido e ter relações sexuais com outro homem, ficando indignada apenas com a indiferença com que a confissão é recebida; Cassiopée (Eve Duranceau) é a que encontra o lado doce do protagonista mesmo assumindo publicamente um relacionamento com outro; Rose (Kathleen Fortin) é “racista por força das circunstâncias” (não é preciso adicionar nada aqui); e Autore (Éléonore Loiselle) vê algo interessante no protagonista, lamentando que ele seja um “ladrãozinho sem moral”.

É o Antonin de Maxim Gaudette a justificativa para o título do filme. Ainda que ele faça menção expressa a seu parceiro de crimes, que teria aversão ao uso de sabonete, a higiene do título é social, não individual. Seguindo esse raciocínio, quando o protagonista menciona ter visto que Cassiopée assumiu um relacionamento no Facebook, ele expõe a danosidade das redes sociais, das quais aparentemente não gosta. Ele é um bon-vivant (todavia, o filme escolhe o termo “dândi”), alguém que quer aproveitar os prazeres da vida (carnais, especialmente) objetificando quem o cerca. Contudo, sua empolgação concernente a esses prazeres não é nada contagiante. Sua moral é ambígua, já que admite o cometimento de crimes, ressalvando que o faz sem uso de violência (na sua ótica, “como gentleman”); por outro lado, censura com veemência o racismo de Rose – talvez como subterfúgio para disfarçar os próprios problemas.

Higiene social” parece um teatro filmado e tranquilamente poderia ter sido uma peça teatral ao invés de um filme. Seu humor é obsoleto (o médico que apalpa, o duelo sensual e a experiência de Antonin como cineasta são exemplo das piadas sem muita graça); as personagens, pouco interessantes. Com a vividez do teatro, talvez o resultado fosse outro; fato é que as ferramentas cinematográficas não são bem empregadas, ao menos não para favorecer a própria proposta. É interessante observar as opções de linguagem do diretor, mas a obra exige o esforço do espectador de superar o tédio verborrágico de uma visão niilista da existência.

* Filme assistido durante a cobertura da 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.