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“NÃO ESPERE MUITO DO FIM DO MUNDO” – Falando exaustivamente sobre exaustão (e vários outros assuntos) [47 MICSP]

Mesclando cinema, economia, sociedade e política, NÃO ESPERE MUITO DO FIM DO MUNDO é uma comédia de humor ácido que caminha na linha tênue entre o verossímil e o exagero. Através da história e da História, o filme mostra as mudanças (geralmente para pior) ocorridas em Bucareste para demonstrar uma realidade que começa com a exploração e termina com a exaustão, literal e metaforicamente.

Angela trabalha muito e recebe pouco como assistente de produção de uma multinacional que vai gravar um vídeo sobre segurança em ambientes de trabalho. Sua função é fazer entrevistas iniciais com trabalhadores que se lesionaram, depois um deles será escolhido para a gravação. Apesar de cansada e revoltada, ela prossegue no trabalho, afinal, não há opção.

(© 4 Proof Film / Divulgação)

Do ponto de vista da linguagem, Radu Jude conseguiu superar seu “Má sorte no sexo ou pornô acidental”, vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim, embora utilize um recurso semelhante, a subdivisão em partes. Por vezes, a narrativa principal sofre uma sobreposição de outra; ao final, surge uma segunda parte, que na verdade é o clímax, com uma narrativa própria e exclusiva em continuidade à anterior. Quem conduz a maior parte do filme é Angela, interpretada com vigor por Ilinca Manolache, a protagonista. Sua narrativa, que é a principal, é interrompida por uma narrativa secundária, consistente em recortes oriundos de um filme de 1981 sobre uma taxista homônima (“Angela merge mai departe”, de Lucian Bratu), e por vídeos que ela mesma grava para o Tiktok, usando um filtro para assumir outra identidade e outro nome. De certa forma, há três realidades paralelas e concomitantes antes da segunda parte, duas delas com a mesma pessoa com diferentes nomes, e duas delas com pessoas distintas e mesmo nome, sempre com uma união temática mínima.

Essa subdivisão é enriquecida na medida em que a fotografia distingue as narrativas: os vídeos de TikTok (que não chegam a compor uma narrativa própria, mas interrompem a principal) são de alta qualidade, enquanto as narrativas têm imagem granulada, uma (a principal) em preto e branco, a outra (dos recortes) colorida. Às vezes, a montagem conduz as alternâncias por similaridade (as duas Angelas dirigem e encontram problemas no tráfego), outras vezes, por distinção (uma se relaciona de modo carnal com seu parceiro, a outra é mais romântica). O diretor jamais é óbvio em seu trabalho, deixando ampla margem de interpretação, como no uso do super slow. Dentre os assuntos do filme está o próprio cinema, de modo que a participação de Uwe Boll, satirizando os críticos de cinema, é um dos momentos mais engraçados do longa.

Não se trata de uma comédia hilária para dar gargalhadas. Apesar de tratar de assuntos sérios, seu humor ácido é inteligente; parte resulta do sarcasmo, uma vez que Angela é muito sarcástica, parte é humor situacional (a gravação em chroma key chega a ser patética). Os diálogos, sempre afiados, exercem importante função para os momentos cômicos, por exemplo na conversa da protagonista com a mãe sobre a realeza britânica. O sarcasmo pode ser indireto (o toque do celular de Angela é a Nona Sinfonia de Beethoven, cuja letra fala de alegria), mas é uma constante.

Em uma primeira camada, o filme é sobre a precarização do trabalho, exemplificada pela rotina de Angela. Com sono, ela acorda cedo já cansada e falando palavrões. A jornada é exaustiva; o sono e a fadiga a acompanham o dia todo, com a ciência (e a indiferença) do chefe, então a solução acaba sendo tomar (muito) café (ou energético) e colocar música alta para não dormir ao volante – descansar, jamais. Angela não é romantizada, ela fala palavrões, solta gases e encontra nos vídeos feitos no TikTok uma via de escape ao esgotamento, que não é apenas físico, mas está em todos os âmbitos. Além do estresse do próprio trabalho, há um trânsito caótico a ser enfrentado, por exemplo, e um machismo que pode não ser o mesmo machismo que a outra Angela enfrentou (já que ninguém diz que o trabalho dela não é trabalho de mulher), mas existe (não foi à toa sua escolha para buscar o lanche).

O filme é tão fiel ao tema do cansaço que o próprio espectador fica cansado ao ver o trabalho repetitivo da protagonista em uma narrativa inflada em mais de 160 minutos com suas conversas banais (a almofada de gato, a coroação de Charles) e seus subtextos. Na primeira parte, a sequência de lápides parece inacabável; na segunda, o plano longuíssimo é eventualmente engraçado, mas seu significado é deprimente. O texto transborda a exploração laboral e passa por temas conexos, como os interesses corporativos por trás do vídeo (que implicam amenizar os fatos), o grau de democracia dos países ex-URSS (que reflete em visões de mundo), opiniões de alguém oriundo de um país rico (idem), o ímpeto mercadológico que está em uma pequena loja e em ligações de telemarketing (que também traduz um modo de exploração do consumidor) etc. Entretanto, seria possível retirar algumas cenas, sem prejuízo do resultado final, na medida em que nem todos os assuntos podem ser abordados com profundidade. Não é preciso ser exaustivo para falar sobre exaustão.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).