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“O MENINO E A GARÇA” – Resiliência, ou outra interpretação

O fogo é capaz de destruir, mas também tem a aptidão de transformar. Essa é apenas uma das metáforas presentes em O MENINO E A GARÇA, uma alegoria sobre a resiliência em relação a traumas e ao indesejável. Seu grande ensinamento é que aceitar algo nem sempre é ruim e pode ser menos doloroso do que parece.

Ainda sentindo as dores da perda da mãe, ocorrida durante a guerra, Mahito passa a morar com o pai e a madrasta em uma propriedade familiar no campo. Quando se comunica com uma garça-real, o garoto inicia uma jornada fantástica de salvação.

(© SATO Company / Divulgação)

Dirigido e roteirizado por Hayao Miyazaki, o longa é dotado de ingredientes reiterados de sua filmografia, tanto do ponto de vista simbólico (o fogo, que, como visto em “O castelo animado”, não precisa ser associado a algo pernicioso) quanto narrativo (o uso de um corredor como ponto de partida para a aventura fantástica, tal qual ocorre em “A viagem de Chihiro”) e visual (o forte verde bucólico como o de “Meu amigo Totoro”). A estética sonora é detalhista, com muitas cenas restritas a sons intradiegéticos (como quando Mahito se esgueira de volta para o quarto quando o pai volta para casa) e uma trilha musical emocionante.

Igualmente detalhista é a estética visual, que não foge muito ao que foi anteriormente visto nas produções da Studio Ghibli, com animação tradicional 2D traduzida em um rico (e muitas vezes com aparência de real) design de produção e expressividade das personagens, inclusive as não humanas. Sem ficar imageticamente engessado, o filme tem três momentos marcantes do ponto de vista gráfico: o primeiro (o mais breve) tem uma aparência embaçada e tremida para explicar de onde parte o protagonista, o segundo é centrado no real e expõe o lado bucólico da nova vida de Mahito, e o terceiro (o mais variado) é o que se dá quando o longa adentra no surreal. No último, há um trânsito entre, por exemplo, uma atmosfera naval (diante não apenas da trama, mas dos cenários e dos vestuários), um contexto comicamente sombrio e uma aura paradisíaca.

Esse encaminhamento do design de produção denota bem o clima impresso na narrativa. A despeito de a história se iniciar com um trauma pelo qual passa o herói, isso não impede que Miyazaki empreste à narrativa pitadas de humor, como quando as empregadas se mostram fascinadas em relação à comida enlatada. Não obstante, mesmo o humor não elide as diversas camadas, eventualmente difíceis de se perceber, que estão no texto: o fascínio pode ser cômico, mas pode ser resultado de um contraste concernente ao período bélico anterior (isto é, essa empolgação não é gratuita, mas fruto de um alívio de quem experimentou um período difícil). Além disso, alguns diálogos são muito sagazes, como a do paradoxo da garça (“todas as garças-reais são mentirosas”). Em termos de tom, portanto, o longa é bastante equilibrado, não permitindo que as cenas engraçadas apaguem o drama que o embasa.

Ao contrário de parte das demais obras de Miyazaki, dessa vez há uma demora na exploração da fantasia, ao menos em sua plenitude. A garça, ao rondar Mahito, é uma primeira aproximação ao fantástico, quando a morte, para o garoto, é algo simplista: as pessoas morrem e os que vivem ficam tristes em razão disso. A compreensão do garoto a esse respeito, todavia, é ampliada à medida que ele mergulha no universo surreal e, sem desconsiderar uma empreitada específica voltada a uma finalidade particular, aprende que o incompreensível existe e deve ser aceito. Não apenas Mahito, mas também Natsuko, age na direção de fugir de uma realidade que lhe desagrada. O portão onde conhecimento e perecimento são conectados ratifica a ideia governante de que não é possível – a não ser que se trate de um ser com poderes divinos – compreender tudo e que é imperioso aceitar isso. O surgimento de uma nova personagem ao final alonga a animação, mas é fundamental em uma perspectiva ontológica para ratificar que o mundo funciona como funciona.

A ideia de vida e morte se faz presente no filme de diversas formas e compõe o núcleo da ideia governante. No entanto, é a partir dela que a personagem mencionada faz uma expansão capaz de refletir sobre a sociedade, a condição humana e, de certo modo, o multiverso. Na realidade em que Mahito nasceu, periquitos são pequenos e aves em geral não são antropomórficas. Nem todas as realidades, contudo, funcionam dessa forma. Em todas elas, ainda assim, exige-se uma capacidade de resiliência diante dos infortúnios.

Essa, por fim, é apenas uma das interpretações possíveis do fértil “O menino e a garça”. É preciso atentar ao fato de que existem diversas simbologias no longa, como a garça (associada à renovação na mitologia egípcia), os pelicanos (alegoria para o autossacrifício cristão), a torre (metáfora para a proteção) e assim por diante. Cada espectador terá a sua experiência com a obra, certamente proveitosa em algum sentido.