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“O SONO DA MORTE” – Poderes que se materializam

Gêneros cinematográficos não são categorias fechadas e estanques, eles se retroalimentam e se hibridizam para passar sensações a partir das histórias contadas. Mike Flanagan é um dos diretores recentes que mais testam as possibilidades do terror, construindo uma carreira marcada pelo diálogo com outros estilos. Em O SONO DA MORTE,, o horror se combina com o drama e com a fantasia em uma narrativa baseada nos poderes fantásticos da memória.

(© Playarte Pictures / Divulgação)

É ao redor do casal Jessie e Mark que a trama se desenvolve. Eles perderam o filho pequeno em um trágico acidente e decidiram adotar uma criança tempos depois. Com isso, Cody é adotado e parece se adaptar muito bem à nova família. Contudo, as noites de sono em seu quarto revelem um dom tão fantástico quanto perigoso: os sonhos do menino se tornam real e os pesadelos se tornam ameaças palpáveis. A cada novo dia, os protagonistas se aproximam de histórias terríveis do passado e do presente.

Cody é a mola propulsora para a fantasia e para o drama do roteiro. Sempre que ele adormece, seus sonhos se materializam de forma graciosa ou angustiante: o cineasta diferencia símbolos visuais para sonhos pacíficos e pesadelos tensos, fazendo borboletas coloridas (o interesse do garoto) representarem seus sonos tranquilos e um bicho-papão esbranquiçado, retorcido e cercado pelos mesmos animais agora sem cores simbolizar os sonos agitados pelo sofrimento. Faz muita diferença para os efeitos dessas representações a presença de Jacob Tremblay, um ator mirim que, desde cedo, demonstra balancear sua inocência natural com o peso dramático de seus personagens – uma combinação que ressalta o fardo carregado por Cody por não se lembrar da mãe biológica e se sentir culpado pelas tragédias ocorridas nos lares adotivos por onde passou.

O drama que orbita a criança encontra eco nos conflitos vividos pelo casal protagonista. A perda precoce do filho Sean afeta homem e mulher de modos distintos: Mark se esforça para fazer parecer que já superou o ocorrido e que percebe que a vida deve seguir em frente, mas cede às emoções ao rever imagens dele; enquanto Jessie precisa fazer terapia e se atém às lembranças registradas, por exemplo, nos retratos espalhados pela casa. Thomas Jane e Kate Bosworth evidenciam as jornadas de seus personagens com sensibilidade, através do apoio afetuoso que um oferece ao outro e do esforço sincero de amar e deixar Cody confortável. A partir do momento em que eles presenciam os resultados dos sonhos de seu novo filho, o peso dramático em torno das recordações de Sean impacta os dois, especialmente Jessie, que muda de comportamento e parece trazer o passado de volta sem perceber que ele nunca seria o mesmo.

Mike Flanagan materializa os encontros entre terror e drama também através da abordagem específica de cada gênero. O diretor trabalha o medo e o assustador tanto a partir de jump scares – inseridos dentro de uma construção narrativa que possibilita os efeitos próprios desse recurso com sucesso – quanto a partir de uma atmosfera psicológica sugestiva – estabelecida por aparições repentinas de entidades misteriosas no fundo do quadro não totalmente em foco e em silêncio. Já a carga dramática vem da extrapolação dos temores dos personagens, como acontece com a traumatizada Jessie por não ter conseguido evitar a morte do primeiro filho e com Cody amedrontado em sua pouca idade por medos que se ampliam em sua mente (afinal, para qualquer criança um bicho-papão pode ser uma verdadeira ameaça).

A maneira como a unidade estilística se constrói reforça ainda mais a materialidade dos riscos corridos pela família. É comum ver no cinema de terror que muitos filmes criam “monstros imaginários” que não são sentidos pela maioria dos personagens (era de se esperar, por exemplo, que os pais adotivos e os colegas de escola não notassem o que seria fruto da mente do menino). Entretanto, a ameaça é palpável e recai sobre quem está ao redor de Cody em casa e no colégio, algo que permite à equipe de efeitos visuais criar uma criatura que possa ser mostrada explicitamente sem diminuir seu impacto. Assim, elementos abstratos como memórias e sonhos assumem uma dimensão concreta que coloca vidas em perigo, misturando diferentes sensações como o cineasta já havia feito em “O espelho“.  

É possível fazer ressalvas quanto ao desenvolvimento do roteiro em relação à proposta de articular gêneros. A passagem do segundo para o terceiro ato ainda conserva clichês típicos das histórias de mistério sobrenatural – não faltam as sequências de investigação que levam a entrevistas em hospícios para obter informações valiosas. O casamento entre terror e drama fica suspenso por alguns momentos, provavelmente porque Flanagan ainda refinava seu estilo para concretizá-lo plenamente. É perceptível, portanto, que o realizador desenvolvia uma abordagem artística que ficaria mais coesa em “A maldição da residência Hill” (clique aqui para ler a nossa crítica) e “A maldição da mansão Bly” (clique aqui para ler a nossa crítica).

Nem por isso “O sono da morte” não consegue explorar a coerência de suas decisões formais. De forma gradual e orgânica, a produção emociona os espectadores ao revelar o peso de memórias na mente e no coração de um jovem despreparado para lidar com tragédias inesperadas. Em escala crescente, o horror se torna mais inventivo, preenchendo com toques oníricos de pesadelo o clímax dentro de um orfanato e dos anseios simbólicos de Cody. Por conseguinte, os maiores medos resultam mais da própria realidade de dores e angústias mal resolvidas do que de monstros ficcionais – uma percepção que se materializa através do dom do garoto e do poder dos gêneros cinematográficos de se encontrarem uns nos outros.