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“TITANE” – Talvez

* O filme está disponível com exclusividade na plataforma da MUBI (clique aqui para acessar).

Raw” pode não ser uma obra-prima da sétima arte, mas tem criatividade e virtudes suficientes para fazer com que sua diretora recebesse atenção – afinal, foi seu primeiro longa-metragem. Com TITANE, seu segundo longa, ela se tornou a segunda mulher a ganhar a Palma de Ouro (a primeira foi Jane Campion, em 1993, com “O piano”, cuja crítica pode ser conferida clicando aqui). Talvez agora a cineasta não seja mais promessa, mas realidade consagrada.

Após cometer crimes em série, Alexia encontra uma oportunidade para não ser identificada pela polícia: fingir ser o filho desaparecido de um bombeiro. Dizer mais do que isso significaria comprometer a experiência do filme, razão pela qual a sinopse deve ser curta como esta.

(© Kazak Productions / Divulgação)

Assim como em “Raw”, Julia Ducournau apresenta um body horror visceral, tão provocativo quanto o anterior. Há muito gore desde os minutos iniciais (a cirurgia na menina), seguido de fluidos corporais nauseantes para uma plateia sensível. A nudez se faz presente, porém com normalidade, isto é, sem a sua espetacularização (inclusive com um pouco de nudez masculina).

O erotismo da película, que é inegavelmente um forte elemento que a compõe, é constante e independente de nudez. Na feira de carros, Alexia faz movimentos sensuais enquanto vestida (ainda que com poucas roupas), ao passo que, em seguida, no banho, seu corpo desnudo não transmite sensualidade. Igualmente, quando ela dança em cima do caminhão ao som de “Wayfaring stranger” (de Lisa Abbott), as roupas não obstam a sedução (embora a cena tenha outro viés).

Soma-se à nudez e ao erotismo a alta carga de violência do longa, em especial em sua primeira parte. Nem sempre ela é gráfica, surgindo imagens posteriores a ela (hematomas no corpo da protagonista), contudo é chocante quando explícita (as cenas em banheiros impressionam). No primeiro ato, o espectador conhece Alexia e a acompanha em seus crimes, sendo o objetivo mostrar quem é ela.

Agathe Rousselle transforma Alexia em uma mulher que não se encaixa no mundo. Seus atos criminosos, em uma interpretação para além da literalidade (sobretudo por se tratar de um filme completamente alegórico), são reflexo do seu desconforto. Ela é antipática com mulheres (como na cena do banho) e parece não confiar em homens (como na cena em que corre até seu carro ou nas primeiras interações com Vincent). No segundo ato, a ideia governante se faz clara: trata-se de uma metáfora para a transição de gênero. Insatisfeita com o corpo feminino, Alexia passa a habitar uma identidade do gênero masculino.

Assim, no segundo ato, aparecem as dificuldades da transição, como a faixa colocada nos seios e que deixa marcas (o que é de uso relativamente comum para homens trans para ocultar os seios). Fica claro ali que o pretérito de Alexia era um verdadeiro fardo, de modo que a transição de gênero pode ser capaz de dar-lhe a paz desejada – e é isso que ocorre. Se é um respiro tirar a faixa, a perenidade da agora correta identidade de gênero é um alívio mais profundo. Todavia, Adrien é filmado muitas vezes através de frestas, como se ainda precisasse se esconder perante os demais.

Titane” vai além desses simbolismos e aborda outros, de maior complexidade. É o caso da atração sentida por Alexia, desde a infância, por metais e, em especial, veículos automotores. Não é à toa que, saindo do hospital, ela corre para beijar o carro de seu pai, o que se torna paradoxal, já que foi no carro que ocorreu um evento que mudou sua vida. Ainda assim, o metal faz parte de si (literalmente) e representa sua zona de conforto, o que justifica o fato de querer sempre perto o palito metálico usado para fazer coque no cabelo.

O masculino surge como uma figura ora de rivalidade, ora de autoridade ou de fragilidade. No primeiro caso, exemplo é Rayane (Laïs Salameh); nos demais, Vincent incorpora essas noções. Vincent Lindon tem mais um ótimo trabalho ao fazer de seu homônimo uma personagem que vai de dois extremos: em público, um autocrata (tanto no trabalho, onde se considera um deus, quanto em casa, onde não aceita tranquilamente as respostas negativas de Adrien, como de tirar a roupa); quando só, alguém frágil e dependente de esteroides.

Ducornau critica o patriarcalismo ao estilo “A filha perdida” (clique aqui para ler a nossa crítica), explorando a toxicidade da masculinidade (por exemplo, na cena do ônibus). Alexia prefere ter relações sexuais com objetos inanimados do que com homens, o que ao mesmo tempo denota a sua repulsa por figuras masculinas e cria uma inversão da objetificação (afinal, geralmente as mulheres são objetificadas, trazendo verdadeiros objetos para a sexualidade).

Há misantropia na personalidade da protagonista (do contrário, ela não teria agido como agiu quando tinha relações sexuais com outra mulher), circunstância que sugere uma descrença na humanidade. Talvez essa descrença seja acertada, talvez a podridão humana não encontre uma luz no fim do túnel e corrompa toda a espécie. Talvez “Titane” seja um bom filme.

Não, quanto a isso não há dúvida. O “talvez” fica apenas para as metáforas do filme, não para a sua qualidade.