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“UMA VILA SEM FILHOS” – Reza Jamali não é Jafar Panahi [47 MICSP]

A 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo trouxe ao Brasil “Sem ursos”, filme do premiado diretor iraniano Jafar Panahi. Seus filmes são conhecidos por simularem, pela ficção, um documentário dentro da diegese. Um ano depois, na 47ª edição, a MICSP traz um longa com o mesmo estilo, UMA VILA SEM FILHOS, com uma diferença substancial: um leve e agradável humor pueril.

Há vinte anos, Kazem filmou um documentário em um vilarejo onde todas as mulheres eram inférteis. Indignadas, elas destruíram o material gravado antes de ele se tornar público. Agora, foi descoberto que a infertilidade não era das mulheres, mas dos homens. Com a notícia, Kazem retorna ao local para reparar o seu erro.

(© Salman Abbasi / Divulgação)

Tanto Panahi quanto o diretor de “Uma vila sem filhos”, Reza Jamali, compartilham características comuns deveras atrativas (ressaltando, todavia, a maior extensão e a maior diversidade da filmografia do primeiro). Os cineastas, ambos iranianos, filmam pessoas comuns (que surpreendentemente são boas intérpretes, mesmo com pouca ou nenhuma experiência) e se aproveitam da linguagem documental mesmo na ficção para denunciar uma realidade. A grande diferença é que Panahi já foi condenado a não produzir filmes, tendo descumprido a condenação e conseguido contornar a censura a que foi imposto. Nesse sentido, Jamali é muito mais modesto, porquanto ainda que censure determinada situação, a situação é mais genérica e a censura, mais branda.

Os cenários se dividem basicamente em dois: a região montanhosa que cerca um belíssimo campo de gramado verde e flores amarelas, filmada em planos gerais, e a vila de tons pastéis e castanhos, filmada em planos fechados. As cores denotam a pouca vivacidade do vilarejo; os enquadramentos, a opressão a que as mulheres são submetidas. É essa, inclusive, a denúncia na qual o longa é pautado: as personagens vivem em uma comunidade machista na qual as mulheres, supostamente inférteis, são descartadas tal qual um objeto que não se presta ao fim a que se destina; o divórcio é a solução se o problema de fertilidade for delas, mas apenas delas. Os fatos são rejeitados pelos homens e a possibilidade de sua condição real se tornar pública é uma desonra que deve ser obstada.

Mesmo sendo um assunto sério, Jamali encontra terreno fértil para o humor. Os homens são expostos como infantis, como quando uma mulher briga com seu marido pelo telefone ou quando um deles é chamado para o exame (em que os demais, estupidamente, já que farão o mesmo, riem). Por vezes, trata-se de uma comédia de trapalhadas, tal como ocorre na cena do parto, em que as personagens discutem fora da casa. Não obstante, o verdadeiro brilho cômico reside em Moslem, o assistente de Karem (Behrouz Allahverdizadeh), cuja trajetória se inicia como um quid pro quo: este o ensina a dirigir, aquele convence as mulheres a participarem do documentário. Dedicado, os primeiros passos de Moslem são de espelhamento (copiando o enquadramento com as mãos, como se fossem a câmera), com posterior veneração ao ofício (a claquete não é ferramenta de trabalho, mas instrumento de autoridade, dada a maneira como ele a possui) e trabalho constante (joga pétalas no cenário, arruma o cabelo de uma personagem…).

O que torna Moslem interessante é que, por trás dessa dedicação, há um homem travesso, ingênuo e sonhador. Travesso, porque mesmo quando tem uma boa ideia para solucionar um problema (o anonimato de um depoente), não resiste a brincar com a própria solução. Ingênuo, porque claramente não tem noção de como funciona a indústria, basta ver a cobrança por uma remuneração. Sonhador, porque pretende ele mesmo ser um diretor. Sem todos os dentes e de riso fácil, Hamdollah Salimi faz de Moslem uma personagem muito cativante, cuja puerícia – traduzida pelas travessuras, pela empolgação e pelo orgulho de si – é o verdadeiro motor do filme. A piada com a quebra da quarta parede é repetida além do necessário, mas é compensada pelo carisma de Salimi e pelo pouco usual diálogo entre a diegese e a diegese dentro da diegese.

Em relação à metalinguagem, a existência de um filme dentro de um filme permite a Jamali alternar o ponto de vista de maneira engraçada, o que, por outro lado, reduz o impacto da sua censura ao machismo. Subsiste ainda a exposição das dificuldades de se fazer um filme: Karem tem o rechaço tanto das mulheres como dos homens, havendo ainda interesses externos (da polícia) na sua filmagem. Sem grande profundidade, Jamali menciona também as consequências de um documentário, consistentes, no caso, no receio de não conseguir um casamento depois de o filme chegar ao público. Profundidade, a bem da verdade, não é exatamente o objetivo da obra, como se depreende do arco da médica (Maryam Momen), que é pouco relevante e revela que a personagem existe somente para ajudar a mover a trama. Provavelmente não é o que Panahi faria. Porém, Reza Jamali não é Jafar Panahi – e talvez nem pretenda (e certamente não precisa) ser.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).