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“EU, CAPITÃO” – Exploração do outro

O conceito lugar de fala já foi menosprezado por leituras simplistas e distorcidas. Chamar a atenção para o lugar social do enunciador que se expressa não equivale a impor um monopólio para certos grupos e indivíduos de tratarem o tema. Como Djamila Ribeiro coloca, a questão é identificar o peso distinto que as vozes de setores hegemônicos e oprimidos têm na sociedade e as implicações dessa desigualdade. EU, CAPITÃO é um contraexemplo que cabe muito bem na discussão sobre quem representa o quê e como.

(© Pandora Filmes / Divulgação)

Seydou e Moussa são primos e trabalham sem que suas famílias saibam. Os adolescentes desejam um futuro melhor para seus familiares, por isso guardam dinheiro secretamente para viajar do Senegal para a Itália. A viagem precisa ser às escondidas e o trajeto é legal, pois envolve documentos falsos e uma rota clandestina. Em função de várias adversidades, eles atravessam o deserto e o mar lidando com graves obstáculos.

A voz específica que enuncia a jornada dos jovens senegalenses é a do diretor italiano Matteo Garrone. Ele pode até ter boas intenções e demonstrar empatia pelos protagonistas, mas a sua realidade e o universo representado possuem diferenças que criam desafios complexos para a narrativa. Possivelmente, o maior deles envolve a abordagem do continente africano e dos arcos dramáticos sem estigmatizações. As falhas se sucedem nesse ponto. Ao longo de todo o filme, Senegal e Líbia, países por onde os jovens passam, proporcionam uma escalada interminável de dificuldades e tragédias (subornos, travessia desumana pelo deserto do Saara, violência policial, brutalidade dos mafiosos, separação dos primos…). Consequentemente, a encenação é monotemática, ou seja, apresenta apenas uma sequência de barreiras a serem superadas e explora a dor e o sofrimento sem o devido cuidado para não esvaziar o impacto das imagens.

Todos os problemas decorrentes de uma abordagem monotemática ocorrem porque a narrativa enfraquece qualquer cena diferente da exploração da dor alheia. E momentos potenciais para isso existem. Há passagens que mencionam a pluralidade cultural do Senegal, a importância da ancestralidade para a sociedade, a boa relação entre Seydou e Moussa e a união entre pessoas sob a mesma condição de opressão. Apesar da existência de sequências assim, Matteo Garrone retrata cada uma delas com uma frieza distanciada que não gera emoções. Em tese, o espectador reconhece a tentativa de fazê-lo se emocionar, porém percebe por seu intelecto e não por sua relação sensorial com a obra. No máximo, são momentos que quase emocionam. Além disso, os flertes com uma espécie de realismo mágico no deserto e na “prisão” dos mafiosos não passam de um breve instante filmado de modo burocrático.

Paralelamente, o cineasta também cai na própria armadilha que parecia recusar. As boas intenções de dirigir o olhar para uma realidade diferente da sua que não pode ser invisibilizada não impedem representações distorcidas ou idealizadas. A jornada dos protagonistas pode ser sintetizada na seguinte afirmativa: os africanos criam obstáculos para si mesmos na busca pela salvação. Tal ideia está presente do início ao fim, a começar pela desvalorização de personagens coadjuvantes que não enganam, chantageiam ou violentam (como é o caso do homem que ajuda Seydou). Logo, a narrativa amplifica a exploração da dor dos adolescentes e generaliza o continente africano com estereótipos. Ao mesmo tempo, todas as menções à Itália são recobertas de profunda idealização. Na viagem de barco, a chegada ao destino final é tratada como a resolução de todas as dificuldades. Há apenas um personagem que se opõe a essa visão, embora seu tom exagerado não exponha as contradições da Europa com seriedade.

A representação social da jornada para a Itália pode ter problemas, mas não são capazes de sufocar os trabalhos de Seydou Sarr e Moustapha Fall. Os dois atores fazem com que seus personagens sejam, de fato, preocupados um com o outro e sintam as aflições dos fatos que vivenciam. Os arcos dos jovens também se encontram na questão da destruição da inocência, afinal atravessar tudo que atravessaram aos 16 anos exige um amadurecimento forçado que reúne uma série de conflitos inimagináveis. Entretanto, o elemento que mais aparece não está imune de uma construção estética precária que não o leva ao máximo do que poderia. O potencial emotivo da separação e do reencontro dos primos não é alcançado, já que as cenas correspondentes não destacam os dois momentos. E o desenvolvimento do percurso dramático de Seydou é coerente do ponto de vista de construção textual sem despertar envolvimento emocional do público.

Eu, capitão” se desenvolve no sentido de preparar uma grande transformação para Seydou. O protagonista se vê cercado por diversas dúvidas sobre ser possível ou não atingir seu objetivo até a chegada do clímax. Na conclusão, uma viagem de navio seria o momento catártico para o jovem assumir as rédeas de sua vida, enfrentar suas dúvidas e invocar o título do filme. Tudo isso pode ser visto nas últimas sequências, embora dentro de uma encenação desorganizada que prejudica a tensão e o senso de urgência pretendidos. Os riscos que uma mulher sofre e a desestabilização de uma multidão desesperada são filmados com uma decupagem que nem contextualiza os fatos nem evoca uma empatia forte pelos personagens. A própria fala final se vira do avesso e se torna uma contraexemplo do que pode ocorrer quando a distância social entre a voz que enuncia e a realidade que se representa é tão grande que superexpõe a dor do outro e se mantém dentro de estereótipos.