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“LA CHIMERA” – A arqueologia da alma

Em meio à vastidão do seu teatro de aparências, existem arqueólogos dispostos a decifrar as camadas mais profundas do cinema. São autores destituídos do medo de sujar as próprias mãos, de investigar o subterrâneo das próprias imagens, sem temer o que podem acabar trazendo consigo. Ainda que esses terrenos não sejam necessariamente soturnos, inúmeros fantasmas emergem dessas profundezas, dispostos a permanecer aprisionados em nossas mentes. Investigando esse lugar inconsciente, LA CHIMERA busca a beleza das impermanências, escondidas nas relíquias que insistem em nos perseguir.

Perdido em sua vida errante após a perda de sua amada, Beniamina, Arthur leva os seus dias buscando artefatos cobiçados pelo mercado de artes. Ele encontra um grupo de ladrões de túmulos, que em suas investidas parecem proporcionar algum propósito. Conforme se aproxima da misteriosa Italia, e uma antiga “quimera” de mármore aparenta estar próxima, ele coloca a própria existência em perspectiva, questionando a capacidade de superar seu passado.

Filmado em película, o filme dirigido por Alice Rohrwacher projeta uma palpabilidade bastante própria, remoendo formatos e texturas durante a criação escultural do protagonista. É um projeto que reconhece a antologia de sua natureza confabulosa, resgatando o lirismo fantástico de toda uma tradição do cinema italiano, e trabalhando essa linha estilística como mera extensão de Arthur. Aquilo que lhe é ausente se traduz nos intervalos entre a luz e a escuridão, exigindo respostas nas estrelas acobertadas pelos quilômetros e quilômetros das galerias subterrâneas.

(© Mostra de SP / Divulgação)

Do exílio ao refúgio, o personagem de Josh O’Connor tenta encontrar um lar em Italia, não a nação, mas a magnética potência interpretada pela brasileira Carol Duarte. Os intercâmbios de sua gênese – a personagem acompanha a nacionalidade de sua atriz – convergem com a essência do parceiro apátrida, estrangeiro em qualquer lugar senão em seus traumas.

A busca cega por Beniamina (Yile Yara Vianello) estimula a granulação dos planos analógicas, projetada para além da base pictórica e autorizando o sobrenatural a irromper na vida do grupo nômade. Como uma espécie de sexto sentido, Arthur possui um tato único na identificação de tesouros apagados pelo tempo, se destacando entre os membros de sua trupe, fragmentado entre a os objetos que permitem a sua existência e aqueles que parece se imortalizar no pensamento.

A associação entre a quimera – figura mitológica de duas ou mais cabeças, sempre de diferentes espécies – e o espectro de seu passado reforça o apreço do projeto pelo remanescente, petrificando uma existência não resolvida como objeto anamorfo, perseguidor nos recomeços em que tenta investir. Surge uma relação tripla entre o hibridismo do monstro lendário, o nomadismo de Arthur, condenado a se decepcionar com diversas esferas dissociadas de pertencimento, e as incongruências entre os signos comercializados e a verdadeira essência ambicionada pelas personagens.

Ainda que não seja um recurso inédito, a direção de Rohrwacher veicula muito bem a falência de determinados símbolos culturais, traficados como mercadoria, e a atmosfera desoladora que possuí as personagens. O encanto das danças sob o luar se esvai com o amanhecer morno, restando às cicatrizes, os vestígios mais dolorosos e irresolutos daquelas personagens, determinar as suas vidas com uma força superior a de qualquer raridade superfaturada.

Nem por isso o longa deixa de se entregar ao encanto aparente, se permitindo a embriaguez daqueles que se convencem a se apaixonar mais uma vez. Arthur e Italia permanecem como espectros em um mundo dormente, disfarçado por através da sensibilidade imediata de suas luzes, relevos e idiomas. Conduzem nada mais nada menos que o conto de dois forasteiros, estranhos em terra e igualmente estranhos ao toque um e do outro, embora anseiem emergir do subterrâneo de seus dolorosos legados.

Em todo esse processo, e apesar dos traços fantasiosos, é interessante como a câmera da diretora respeita a naturalidade dos planos, longos e abertos em seu modo de imprimir associações entre espaço e presenças. Seu olhar nos convida a decifrar aquilo que se esgueira por através das simbologias, experiência análoga à própria habilidade de Arthur, sempre atento às relíquias que possam, talvez, lhe trazer um pouco do que se foi.

Trágico e belo na mesma medida, “La Chimera” usa a arqueologia como ferramenta de exploração da vida, dissociando as ruínas físicas de seus personagens dos traumas transcendentes que lhes perseguem. Restam as relíquias que pulsam em nossa inconsciência, finitas em matéria mas igualmente permanentes em memória.