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“PROPRIEDADE” – Luta de personagens

Na divulgação de PROPRIEDADE, uma ideia foi recorrente. O terror brasileiro trabalharia a luta de classes como eixo central de sua narrativa a partir da revolta de trabalhadores rurais. Levando em consideração esse anúncio, alguns espectadores poderiam se perguntar se o filme teria um viés panfletário e apoiado na defesa de determinadas teses sociológicas. O que poderia se tornar um discurso rígido sem qualquer experiência sensorial própria, torna-se uma avalanche de conflitos duros e ambíguos que desafia um esquematismo social e promove um ciclo de tensão sem saída.

(© Inquieta Cine / Divulgação)

Inicialmente, dois mundos existem separadamente. Em um deles, a estilista Tereza tenta lidar com os traumas de um incidente de violência urbana no qual quase foi assassinada. O marido Roberto a leva para a fazenda de sua família para que ela pudesse se recuperar. Ao mesmo tempo, os trabalhadores do local são comunicados que a propriedade será vendida e eles terão um respaldo insuficiente para seguirem suas vidas. Indignados com a situação, o grupo de funcionários se rebela em busca de seus direitos e Tereza se enclausura dentro de um carro blindado. Mesmo assim, o embate entre eles é inevitável.

Daniel Bandeira tem ciência de que o ponto de partida é a luta de classes e precisa delimitar o universo diegético a partir dessa oposição. O diretor apresenta os patrões e os trabalhadores, cada classe separada por condições materiais específicas. Quando passam por dificuldades, as respostas são diferentes: Tereza enfrenta o trauma podendo aumentar os gastos com precauções (carro blindado) ou se refugiando longe do lugar que a traumatizou (uma viagem de descanso para a fazenda); já os trabalhadores precisam se unir para resistir à perda de sua fonte de subsistência e ao desrespeito de seus direitos através de uma revolta coletiva. A princípio, a narrativa intercala o ponto de vista dos dois mundos a cada momento na narrativa, começando pela estilista e passando para os funcionários. Após as apresentações de perspectivas classistas, o filme se debruça sobre a colisão das duas realidades sociais e suas consequências.

Enquanto os dois mundos ainda estão apartados, a narrativa humaniza todos os personagens. No caso de Tereza, o fato de ter sido feita refém e presenciado a execução do criminosos a deixou tão traumatizada que não consegue trabalhar nem sair de casa. A atuação de poucas palavras, mas de expressividade física significativa de Malu Galli atrai a atenção para a repercussão do incidente naquela mulher. E no caso dos trabalhadores rurais, as condições a que são submetidos sensibiliza o público porque traduzem o que é um trabalho análogo à escravidão (os documentos retidos pelo empregador e as dívidas com o armazém local) e ameaçam o futuro daquelas pessoas sem os recursos para sua subsistência (a perda dos cultivos na terra jamais substituídos à altura por uma baixa compensação financeira). Em tese, esta humanização poderia ser entendida como uma conciliação de classe, uma estratégia de aproximar desiguais como se passassem por problemas equivalentes. Entretanto, nenhuma correspondência exata é realizada, pois tais elementos fazem parte dos arcos específicos de cada um deles.

Quando a colisão enfim acontece entre funcionários e empregadores, Daniel Bandeira retira aos poucos do centro da discussão a divisão de classes sociais. A diferença social nunca é abandonada, já que os objetivos dos trabalhadores estão sempre presentes e passam pela obtenção de seus direitos trabalhistas e pela posse de terras como fonte de sobrevivência. Porém, o cineasta está interessado na construção de momentos de crescente tensão que deixam o suspense sobre o que pode ocorrer em seguida em aberto. A indefinição cresce à medida que a ira de Roberto com a reivindicação dos funcionários se sobressai e a insatisfação dos trabalhadores produz sérios conflitos, levando-os a uma espiral de acontecimentos destrutivos que impedem uma resolução simples. As características dessas sequências são variáveis, pois podem ser confrontos diretos ou ameaças surgidas do confinamento de Tereza no veículo blindado. No primeiro caso, o choque do que acontece no fora de campo dá o tom, já no segundo caso, as cenas remetem a claustrofobia de obras como “Cujo“, “A jaula” e “O quarto do pânico“.

A falta de qualquer debate sociológico mais profundo no desenrolar da trama, para além do que havia sido apontado no primeiro ato, fica visível nas ambiguidades dentro do grupo de trabalhadores. Não há uma definição pura de classe trabalhadora, totalmente consciente de seus interesses econômicos e da importância de ações coletivas para a superação de desigualdades sociais. O grupo não é homogêneo, sendo possível notar paradoxos e conflitos nas relações entre esses personagens. Zuleika Ferreira vive Tonha como uma mulher sofrida por tantas perdas e dores ao longo de sua vida, mas capaz de assumir um papel de liderança que busca o desfecho mais pacífico dentro das circunstâncias. Nivaldo Nascimento interpreta Everaldo como o sujeito mais impulsivo que apela para a violência com o intuito de resolver logo a situação, inclusive considerando mais seus próprios interesses individuais. E Natureza Rodrigues dá vida a Luana como uma jovem que parece deslumbrada pelas chances de ascender socialmente e ganhar o conforto material de outros grupos sociais se recusar o embate claro.

A construção dos conflitos entre Tereza e os funcionários segue uma escalada de eventos que intensifica a gravidade dos desdobramentos. Todos estão, de algum modo, lutando pela sobrevivência, seja ela por conta do aprisionamento forçado em um veículo, seja ela por conta da expulsão do local de moradia. Nessa luta, a violência é um elemento que perpassa cada vez mais a história e sai do controle de qualquer limite moral que poderia existir em nome da convivência entre eles e da resolução do impasse. Os trabalhadores questionam os patrões em virtude da venda da fazenda e, diante de respostas problemáticas, alguns reagem com suas emoções impulsivas. A partir daí, os embates ganham contornos físicos, a brutalidade das ações aumenta, Tereza precisa se refugiar no carro e os demais personagens precisam retirá-la de lá para não serem punidos. Com o passar do tempo as complicações se tornam maiores e a violência desafia o espectador a se posicionar a favor de certas figuras ou de outras, pois quem não agia violentamente passa a agir e quem já praticava tais atos muda sua postura. Nesse sentido, Daniel Bandeira cria momentos angustiantes a partir da premissa de retirar a mulher do veículo.

Novamente seria possível supor que o filme equipara indivíduos de condições sociais muito diferentes a partir da explosão de violência que ocorre. Seria algo similar à ideia de que a violência do opressor e do oprimido sempre teria o mesmo significado e as mesmas implicações. No entanto, “Propriedade” não está preocupado em apresentar as interpretações específicas de seu realizador sobre os embates sociais no país nem propor soluções para um problema complexo. O ponto de partida até pode ser relacionado às diferenças de classe, mas o desenvolvimento se direciona para um exercício de suspense em que a violência atinge todos e a ambiguidade moral preenche cada detalhe daquele universo. Em certo ponto, Daniel Bandeira lembra os trabalhos de Clint Eastwood que descreve as contradições da sociedade estadunidense sem posicionamentos próprios evidentes. Se parte do público poderia esperar uma síntese do cineasta para o problema, outra parte poderia chamar isso de panfletagem direta. Nenhuma das duas opções é abraçada, já que o interesse maior está na criação de situações que provocam as sensações do público em diversos sentidos, tanto intelectuais quanto sensoriais.