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“CARRO REI” – Manifesto disfarçado de filme

A sutileza não é uma característica exigida nos cinemas, embora seja geralmente apreciada. CARRO REI não se propõe a ser sutil, mas confunde a bandeira que levanta com o próprio filme. O resultado é um ofuscamento do filme em favor da sua ideia governante. Nesse caso, teria sido melhor escrever um manifesto.

O jovem Uno (também conhecido como Ninho) tem a habilidade de se comunicar com carros. Quando uma nova lei proíbe a circulação de carros velhos, a empresa de táxis de seu pai corre o risco de não poder continuar suas atividades. Junto de seu tio, o mecânico Zé, e de um carro que foi seu melhor amigo de infância, o Carro Rei, surge a ideia de mudar o visual dos carros velhos para que pareçam novos. Uma brecha na lei se torna o início de uma revolução muito maior – e mais perigosa – do que a imaginada por Uno.

(© Boulevard Filmes / Divulgação)

A ideia do filme de Renata Pinheiro, que assina o roteiro com Sergio Oliveira e Leo Pyrata, é um pouco similar à de “Medida provisória” (clique aqui para ler a nossa crítica): os dois filmes nacionais partem de uma lei surreal para criar uma alegoria política. No caso de “Carro Rei”, porém, a intenção da alegoria política fica apenas na intenção, em prol de um discurso que não poderia ser mais claro e direto. Isso não seria um problema não fosse o completo esvaziamento de quaisquer características cinematográficas que a obra poderia ter. Tudo é pretexto para a bandeira que o filme levanta, mas mal trabalhado.

A bandeira que o longa defende é associada à agroecologia, o que justifica uma fotografia que exagera no color grading durante toda a sua duração. Para deixar essa defesa ainda mais explícita, o design de produção abusa de tons azuis e esverdeados (paredes, roupas etc.), o que se torna redundante em relação à fotografia e, sobretudo, esteticamente questionável. Quase não existem cores rubras, por exemplo, todavia o visual se torna cansativo em sua mesmice. Há outros equívocos técnicos de realce, como a decupagem pavorosa na cena envolvendo a mãe de Uno (Ane Oliva, certamente a pior do elenco, basta ver a cena em que discute com Josenildo, vivido por um bom Adélio Lima, pai de Uno), mas provavelmente as suas escolhas gráficas são o que mais chama a atenção.

Luciano Pedro Jr. não tem desempenho ruim, mas é frustrante perceber um protagonista sem protagonismo em seu filme. A solução final é muito mais desempenhada por Amora (Clara Pinheiro, razoável), que seria uma personagem interessante não fosse sua incoerência manifesta. Faz sentido que Amora brigue com Uno ao enxergar sua submissão ao “sistema”, praticamente abandonando a militância pela agricultura familiar, o que não faz sentido é, após um diálogo beligerante, comparecer ao evento que tanto criticou. No elenco está ainda Matheus Nachtergaele, que exagera nos trejeitos símios de Zé (curvado e se locomovendo como um primata), um overacting que, contudo, combina com a proposta para o papel (o que não combina são algumas de suas falas que denotam mais inteligência do que ele aparenta).

Narrativamente, “Carro Rei” é, no mínimo, extremamente frágil. Subtramas surgem para não serem desenvolvidas (a discussão dos pais de Uno), inexistem explicações relevantes (por que reformar aquele carro específico? Qual a intenção da Lei Zero Quilômetro?) e abundam diálogos soltos (como quando Zé fala com Josenildo sobre a sua solidão). Jules Elting tem com Mercedes cenas que se assemelham às de “Titane” (clique aqui para ler a nossa crítica), porém aqui elas se tornam despropositadas e são ofuscadas pelo principal defeito do filme, que é a defesa da sua bandeira.

Evidentemente, sustentar uma causa não é um defeito em si mesmo em filme nenhum. O problema é que “Carro Rei” se esquece de ser um filme para além de uma causa, inflando-se com discursos reiterados que se tornam ocos diante do vazio fílmico. Sobram frases de efeito, como “nós somos a resistência”, “tomem o controle de suas vidas”, “comer é um ato político” e “o uso da tecnologia está cravado em nós”, mas faltam virtudes cinematográficas no longa. Quando Uno e Amora falam sobre fazer justiça social, o diálogo simplesmente não convence, seja pelo excesso de didatismo (reforçado pelas repetições incessantes das mesmas ideias), seja pelo não desenvolvimento de todas essas ideias.

Tavinho Teixeira dá um tom assustador em seus sussurros na voz do Carro Rei, sabe-se que ele tem uma inteligência que se destaca e que é perigoso, mas o filme é incapaz de desenvolver a sua alegoria para que o espectador consiga extrair a ideia governante. Não é isso que a obra faz. Ela entrega tudo “mastigado”, simplificado e pronto para o público, que deixa de assistir a um filme e passa a acompanhar uma manifestação disfarçada de filme. E o pior é que o disfarce é ruim.