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“BLACKBERRY” – Caráter à base de silício

É estonteante observar até que ponto a projeção da mente humana é capaz de nos levar. Ciente de nossas fraturas, ela pode nos levar as mais longínquas caricaturas, eficiente na anulação de personalidades que queremos esconder. Talvez venha daí o nosso eterno interesse pelas cinebiografias, que usualmente nos provocam com a dúbia construção de personagens divididos entre a realidade e a fabulação. Com base na construção de um dos bens materiais que melhor revolucionou a vida moderna, BLACKBERRY manipula bem esse senso de alienação inconsciente.

Incapaz de dar voz ao seu brilhante conhecimento científico, o engenheiro Mike Lazaridis busca alguém para investir em seus modelos de celular. Domado pelo próprio ego, o empresário Jim Balsillie encontra aí a oportunidade para o seu crescimento: a criação do primeiro smartphone de sucesso, o “BlackBerry”. Mal sabiam os dois que o fracasso não estaria muito longe.

Dirigido por Matt Johnson, o filme se apropria da câmera documental para colocar o espectador frente a frente com o dinamismo das decisões empresariais. Os zoom ins quase instantâneos dissecam as ações e expressões de cada um dos envolvidos, conferindo à dramaturgia um realismo bastante palpável. 

(© Diamond Films / Divulgação)

Essa dualidade se mostra especialmente benéfica se pensarmos na direção dos atores como a força motriz do projeto. Encarnando a sua personagem com grande ferocidade, Glen Howertton complexifica uma personagem guiada puramente pelo orgulho, fazendo de seu Jim Balsillie uma força magnânima de se ver. Isso revela a desconstrução pretendida pelo filme, que antevê o fracasso iminente dos celulares: não vemos ali nada além de grife, ternos e lábia.

A mesma inanidade se manifesta na força “antagônica”, não pelo conflito dramático mas pela diferença de personalidade. Inerte diante da própria incapacidade, o Mike de Jay Baruchel traz uma insignificância incidental que estranhamente cativa quem o acompanha, ainda que pelos motivos errados. Em meio à sonegação e distúrbios fiscais, ele se torna refém das próprias ambições, vagando sem rumo pelo mundo de aparência que projeta dentro de seus celulares.

Todo essa dimensão performática acaba bem alavancada pelo ridículo da escala toda: se olharmos na história recente da tecnologia, o BlackBerry não passou de um sopro, quase um delírio. Tem-se a transmutação dessa consciência no drama de homens alarmados por sua própria insuficiência, que intercambiam os piores traços de si entre uns aos outros enquanto tentam a elevação por um pedaço de metal.

Boa parte disso também se justifica no contraponto entre os dois CEOs e o restante da equipe, que cultiva uma série de hábitos familiares dentro da empresa. A maneira como tradições calorosas como a “Noite do Cinema” são sendo desmontadas pela brutalidade corporacional demonstra também o dilema central. Até que ponto estaria o gênio envergonhado disposto a anular a própria natureza?

Essa questão funciona muito bem dentro do jogo entre o real e encenação que desenrola em tela, tão fruído quanto as teclas mecânicas dos protótipos acelerados em tela. O debate se estende ainda na medida em que a arrogância de Jim se supõe superior a própria natureza digital dos frágeis aparelhos celulares. Ele é movido pelo ímpeto de constante transformação, se colocando como potência tão poderosa quando destruidora, digna do próprio fracasso.

É como se o filme não fizesse questão de esconder o seu campo mais exagerado, que admite os diálogos engessados e proferidos com bastante raiva – e que nem por isso diminuem as interpretações. A fuga desses dois “gênios” de si mesmo se torna assim tão cômica quanto desesperadora, encaixotada dentro de pacotes precários e terceirizados na China. 

Desse modo, “BlackBerry” traz a crônica de dois homens que, na tentativa de ignorar o seu próprio fracasso interno, acabam antecipando o mesmo dentro de sua própria realidade. Com diálogos rápidos, uma lente frenética e um senso constante de fuga e redefinição, o filme captura bem o peso das mudanças tecnológicas, tão frívolas quanto revolucionárias. Tem-se assim um conto sobre a maleabilidade do caráter humano, que há muito tempo deixou de lado a moral e os costumes para se constituir a partir das fontes de matéria prima vindas do Vale do Silício.