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“FRIO NOS OSSOS” – Bússola moral nômade

FRIO NOS OSSOS tem um pouco de “Os estranhos” e “Hush: A morte ouve” por se aproximar do subgênero de terror de invasão domiciliar. Tem um pouco também de “A maldição da Chorona” e “Mama” ao abordar os exageros radicais do amor materno. O filme disponível na HBO Max se propõe a gerar tensão no espectador, que se veria agarrado na cadeira e sentindo uma gota de suor descer pelas costas devido à união das duas abordagens. Por isso, é tão curioso ver que ele se sai melhor ao desviar o público do lugar mais óbvio de identificação com os personagens do que tentar produzir uma resposta sensorial.

(© Signature Entertainment / Divulgação)

Como se trata de uma trama de invasão domiciliar, a família sob ameaça e a casa invadida são aspectos vitais. Uma mãe vive com seu marido e a filha Maisy em uma fazenda afastada de tudo e de todos na área rural da Inglaterra. Em uma noite, os irmãos Jack e Matty chegam precisando de ajuda após um acidente, mas eles não são tão inofensivos quanto aparentam. E como os excessos do amor materno também estão presentes, a protagonista é capaz de fazer o que for preciso para proteger sua família e seus segredos obscuros.

O diretor Matthias Hoene contextualiza a ação desde o princípio a partir da localização da propriedade. O ambiente interno importa menos do que as condições geográficas do entorno, já que a tempestade e o isolamento em relação a outras moradias destacados em planos abertos fazem qualquer ameaça se intensificar. Além da organização espacial, a narrativa não se apressa para mostrar aquele universo supostamente seguro é um castelo de cartas que pode desmoronar a qualquer instante. A narração em voice over sobre a força de uma mãe em meio à tempestade, a falta de liberdade de Maisy e as limitações físicas do pai após um acidente revelam um estranhamento que vai de encontro ao desejo de normalidade controlada da mãe. Quando Jack e Matty aparecem, a sensação de que algo estaria fora do lugar cresce porque os pedidos de ajuda dos irmãos e a solidariedade da protagonista escondem suas reais motivações.

Esses elementos já são capazes de anunciar a tensão que está por vir, porém a narrativa pesa a mão no desenvolvimento da dinâmica entre os moradores e os recém-chegados. A lentidão do primeiro ato não se justifica tanto para uma história que dá a entender que um confronto elaborado entre os personagens está prestes a acontecer. A decupagem exagera no uso do ângulo holandês para indicar a instabilidade da situação da família após a aparição de Jack e Matty, uma vez que repeti-lo sem critério para enquadrar corredores da casa enfraquece seu efeito. Além disso, o elenco não deixa de ser apenas funcional para a proposta, especialmente Joely Richardson e Neil Linpow. A atriz encarna bem o arquétipo de alguém transtornado por seus objetivos extremos, ainda que não valorize em sua atuação o senso de proteção de um amor doentio; e o ator deixa de apresentar a ambiguidade de um homem dividido pela vida de crime e do envolvimento emocional com o irmão até a primeira reviravolta, quando o texto se sobressai.

Na marca dos quarenta e cinco minutos, o primeiro plot twist reorienta a trama e as expectativas do público. Já era de se esperar que Jack e Matty tinham cometido um crime ou cometeriam mais um, mas não se imagina tão facilmente que a mãe estaria em uma situação semelhante. Eventos do passado da protagonista e da família alteram as relações dos personagens, demonstrando que uma mãe em ocasiões de perigo para seus familiares poderia optar por medidas extremas (ressaltando que o filme extrapola essa ideia para fins dramáticos). Apesar de a reviravolta proporcionar maior inquietação por dar outra imagem para quem seria apenas uma vítima dos invasores, este impacto não se aprofunda para além do choque da revelação em si. Isso se dá porque a narrativa não aproveita a nova informação para criar momentos tensos, sejam eles de um terror frontal, sejam eles de um terror psicológico da sugestão. Com exceção de um confronto ocorrido nesse período, a obra leva o espectador a muito mais imaginar como teria sido o crime cometido no passado e suas consequências do que ser afetado por cenas do presente.

A partir daí, as possibilidades de trabalhar as sensações do horror não se efetivam. Matthias Hoene e o roteirista Neil Lipow não criam sequências que possibilitam reações sensoriais nesses moldes porque direcionam a trama para um jogo moral complexo. Em geral, a narrativa aponta uma bússola moral de identificação na direção dos protagonistas colocados em risco pelos vilões (embora muitos filmes tornem tal operação nebulosa). Em consequência, o público é estimulado a “torcer” para quem considera estar sob maior perigo ou ter comportamentos mais “inspiradores”. E o que pensar quando uma das eventuais vítimas não se enquadra nessa posição e assume uma vilania? É verdade que ainda há personagens que não estão nessa faixa moral tão dúbia e facilitam a identificação e a torcida. Em compensação, a presença marcante de uma ambiguidade coloca em questão algo similar ao que foi abordado em “O homem nas trevas”: será mesmo que os crimes cometidos por Jack e Matty seriam mais graves do que aquilo que foi feito pela mãe?

Conforme a oposição entre os irmãos e a mãe se prolonga, a bússola moral parece cada vez mais imprecisa e provocativa. Por volta de quinze minutos após o primeiro plot twist, outro surge para desestabilizar as certezas aparentemente sólidas. Esta nova revelação chocante afeta o modo como os personagens são compreendidos. Em tese, o público deveria se identificar com a matriarca na sua posição de protetora da família. Entretanto, o rumo dos acontecimentos faz essa identificação migrar para Jack e Matty por não terem atingido um grau de violência tão intenso (ainda mais considerando que o maior crime cometido pela dupla esteja relacionado aos impulsos da condição psicológica do mais novo). Na segunda reviravolta, seria possível reverter a ambiguidade? Não é o que parece, pois Jack se mostra solidário tentando ajudar Maisy e uma nova personagem, enquanto a mãe trata Matty de forma mais carinhosa e acolhedora do que o próprio irmão.

O auge do terceiro ato mantém a desorientação nos ponteiros da bússola moral. Outra sequência de confronto ocorre quando novos personagens do arco de Jack e Matty aparecem para tornar a disputa entre dois mundos ainda mais violenta. Os lados desse embate são bagunçados e alianças incomuns são feitas quando a evolução e os objetivos da mãe, Maisy, Jack e de Matty culminam no desfecho. Em termos narrativos, “Frio nos ossos” consegue justificar sua construção cíclica que faz a condição inicial e final dialogarem com personagens distintos em posições similares. E tal escolha é colocada de forma eficiente. A eficiência da estrutura em ciclo pode combinar com o inusitado da abordagem moral, mas não se concretiza em um filme que também se propõe ser tenso dentro das convenções mais diretas do terror.