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“O HOMEM DO NORTE” – O terceiro longa de um talentoso diretor

A lenda do príncipe Amleth tem servido de inspiração artística há séculos. A primeira e mais famosa adaptação é a peça “Hamlet”, de William Shakespeare. O HOMEM DO NORTE é uma adaptação com viés mais carnal e próximo às origens vikings do plot (ao passo que a obra de Shakespeare tem espírito britânico e muito menos brutalidade). Em seu terceiro longa, Robert Eggers reafirma seu grande talento.

No fim do século IX, época da Landnámsöld, o príncipe Amleth, ainda criança, é preparado para assumir o trono ocupado por seu pai, o rei Aurvandil. Quando o rei é brutalmente assassinado pelo próprio irmão, Fjölnir, Amleth foge para sobreviver, jurando vingança. Anos depois, vivendo do saqueio de aldeias eslavas, ele encontra uma vidente, que anuncia ter chegado o momento de salvar sua mãe, matar seu tio e tomar a coroa que legitimamente lhe pertence.

(© Universal Pictures / Divulgação)

Há um esplendoroso trabalho de pesquisa sobre a conjuntura histórica em que a trama se passa. São aproveitadas não apenas a mitologia viking, com citações verbais a Ódinn e Valhala, dentre outros, mas também a própria cultura daquele povo naquele momento. Apelidos eram meios de impor medo ou respeito (“o corvo da guerra”, “o bruto” etc.), atos de feitiçaria eram dignos de reverência, os conflitos eram resolvidos na força e a morte em batalha era sinônimo de honra. O roteiro escrito por Sjón junto ao diretor Robert Eggers não abre brechas consideráveis para subtextos complexos – ao contrário do que Eggers faz em “O farol” (clique aqui para ler a nossa crítica) -, porém existem três deles que merecem destaque.

O primeiro é o retrato do cristianismo, ainda que superficial, como uma ameaça, de modo que os cristãos – “bebedores de sangue” – são enxergados como inimigos. Ainda que não seja central no roteiro, a menção é digna de nota. Em segundo lugar está um assunto mais forte na (ainda curta) filmografia de Eggers, que é a sexualidade. No clímax, corpos masculinos seminus, musculosos e suados, são exibidos na batalha em contraluz, o que indica que mesmo a batalha tem um aspecto sexual (do contrário, usariam roupas de proteção contra golpes, como em outras cenas). No caso específico do texto, falas como “a taça da rainha fica mais molhada com outros homens” e “sua espada é longa” fornecem uma segunda camada à narrativa, substituindo o sexo explícito (que não é tão presente quanto se esperaria).

Relacionado à sexualidade está o papel das figuras femininas. Dado que “são as mulheres que sabem os segredos dos homens” (e não o contrário), o feminino é colocado à parte na trama, com função acessória, mas sempre ressaltando seu conteúdo enigmático. A rainha Gudrún (Nicole Kidman, excelente como de costume) permite ao script abordar a síndrome de Édipo, tornando complexa a relação entre Amleth e sua mãe. Embora circunstâncias do começo permitam prever acontecimentos posteriores relativos à rainha (o que torna o roteiro, nesse quesito, previsível), também é desde o início que a interação entre mãe e filho tem uma abordagem sexualizada (na primeira aparição dela). Olga (Anya Taylor-Joy, repetindo a parceria com Eggers, porém desta vez sem brilho) é uma personagem cuja ausência não faria muita diferença em termos narrativos, mas que demonstra a posição instrumental exercida pelas mulheres naquela sociedade (de amparo, suporte).

A fidelidade à História está presente também nos aspectos técnicos. A encantadora trilha musical é majoritariamente instrumental; quando cantada, é sempre intradiegética – nos dois casos, acompanhada por uma percussão que funciona como ponte para a época. Igualmente coerente com o contexto está a maravilhosa fotografia (o terceiro trabalho impecável de Jarin Blaschke na parceria com Eggers), cuja luz oriunda de fontes naturais (fogueira, Lua, trovões etc.) agiganta ainda mais as deslumbrantes paisagens. A atmosfera gélida dos cenários nórdicos é representada graficamente pelos casacos usados pelas personagens (além dos flocos de neve caindo, é claro), mas também pelo uso de cores frias e foscas. “O homem do norte” é certamente uma imersão ao mundo viking.

O filme de Eggers é brutal, há bastante gore nos membros decepados e nas feridas aparentes. No papel principal, Alexander Skarsgård mergulha no comportamento animalesco que Amleth aprende com seu pai (interpretado por Ethan Hawke): para se impor perante os inimigos e em circunstâncias potencialmente adversas,  encarnar um animal não humano é lição básica. Sobram urros, uivos, flatulências etc. Aliada a essa impressionante mise en scène, a filmagem eventualmente em primeiro plano e com leve contreplongée – o que já constitui assinatura do cineasta – molda o tom épico da película.

O único deslize do diretor é o uso explícito do surreal, em cenas dependentes de efeitos visuais (principalmente quando Amleth coloca a mão na ferida do pai e quando aparece voando um animal que não voa). Eggers trabalha muito bem com a sugestão, desenvolvendo melhor o misticismo da obra através daquilo que não é claro ou não se distancia tanto do real. Perto de “A bruxa” e “O farol”, “O homem do norte” é munido de didatismo e clareza danosos ao longa. Mesmo que sua narrativa tenha estrutura muito mais tradicional que os filmes anteriores (um protagonista e seu objetivo bem delimitado), o resultado teria sido melhor com mais espaço para a dúvida e para a interpretação do espectador. Sem esse espaço, o terceiro longa é apenas estupendo.