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“CORPO FECHADO”: Os super-heróis de Shyamalan

M. Night Shyamalan ficou conhecido, durante muito tempo, por ser um realizador responsável por filmes com desfechos surpreendentes. Passou, inclusive, a ser cobrado quando essa característica não era tão visível. De onde essa cobrança veio? Dos seus primeiros trabalhos de maior repercussão: “O sexto sentido” e CORPO FECHADO. Pena que esse rótulo parece apenas dar destaque aos seus roteiros e deixar de lado outros aspectos narrativos precisamente pensados pelo diretor.

No caso de seu segundo longa-metragem, Shyamalan desenvolve sua história a partir de uma combinação meticulosa de movimentos de câmera evocativos, uma composição visual bela, estética e narrativamente, e um design sonoro provocativo. Nessa história, vemos David Dunne (Bruce Willis) tentando entender como sobreviveu totalmente ileso de um acidente de trem, enquanto é apresentado a uma explicação inacreditável por Elijah Price (Samuel L. Jackson), um estudioso das histórias em quadrinhos.

O diretor conduz seu filme movendo a câmera sem qualquer pressa ou cortes desnecessários; ele prefere uma abordagem mais naturalista, na qual a câmera passeia, observa e segue os personagens enquanto interagem. Quando ocorrem movimentos mais destacados, a intenção é construir sentidos sem depender de uma troca de diálogos expositivos; podemos perceber isso quando o ponto de vista filmado do interior do trem muda para indicar a iminência do acidente (e os ruídos do trem entrando e saindo de túneis reforçam ainda mais a sensação de perigo), ou quando entendemos a importância das HQs para Elijah ainda criança e o eixo da câmera sai de um ponto de vista invertido para um enquadramento mais tradicional. Sem contar os diversos planos simétricos filmados que remetem à estética de uma revista em quadrinhos.

O trabalho de enquadramento também se deve ao diretor de fotografia Eduardo Serra. Além de trabalhar em parceria com Shyamalan para construir esses planos, ele também é hábil na utilização de filtros de luz mais dessaturados, impregnados de cinza ou mesmo das cores azul e amarela menos vibrantes, para iluminar os ambientes mais frequentados por David. Esse uso ajuda a transmitir a tristeza carregada pelo personagem desde muito tempo; quando algo redireciona sua vida para algum propósito mais intenso, a última sequência em sua casa é iluminada num tom sépia mais caloroso e esperançoso.

A concepção visual de “Corpo fechado” ainda intercala essas escolhas na fotografia com uma direção de arte marcada pela recorrência de determinadas cores em objetos e figurinos ao longo da narrativa. O filme utiliza cores frias e dessaturadas para tudo aquilo que se refere a David e à sua família, em sintonia com seu estado de espírito e com uma abordagem realista do universo dos quadrinhos, e cores mais quentes e saturadas para os vilões ou para personagens que cometeram ações questionáveis, numa ilustração de comportamentos muito exacerbados. Dentro dessa questão das cores, ainda é interessante perceber como o roxo é recorrente nas roupas e demais objetos de Elijah (cor que se convencionou na linguagem cinematográfica a se referir à morte).

Esses diversos elementos acrescentam diferentes camadas de significados ao roteiro da obra. Um roteiro também muito bem construído no desenvolvimento de uma trama que, gradativamente, se apresenta como uma versão própria de Shyamalan para o universo dos heróis. Muitas convenções estão ali: o nascimento de antagonismos entre heróis e vilões, as fraquezas desses personagens, o chamado para ação na clássica jornada do herói, entre tantas outras. Não se trata de uma versão tradicional para esse tipo de história porque não abraça um enfoque nem grandiloquente nem típico de filme de ação; a preferência foi uma perspectiva mais intimista, centrada no enfrentamento de angústias e ressentimentos do passado e na busca por um sentido no mundo.

Este intimismo reflexivo sobressai das atuações de Bruce Willis e Samuel L. Jackson. O primeiro compõe um trabalho contido e meticuloso para um personagem que carrega uma forte tristeza relacionada a acontecimentos e decisões de seu passado e um distanciamento de sua família que não o impede de mostrar seu carinho (como o fato de dormir regularmente com seu filho). Já o segundo constrói um personagem desafiador porque inicia promovendo forte empatia junto ao público devido a uma doença que fragilizava seus ossos e órgãos no geral, para, posteriormente, demonstrar como sua saúde mental se encontrava debilitada a ponto de cometer atos violentos e condenáveis.

Além de estabelecer um desenho sonoro angustiante em muitos momentos de ameaça ao nosso protagonista (na já citada iminência do desastre de trem com os ruídos dos trilhos e do veículo em si e no impacto das águas da chuva durante o terceiro ato) e uma trilha sonora de energia rítmica crescente por James Newton Howard simbolizando o despontar de David Dunne como um indivíduo que se encontra na vida, “Corpo fechado” fica mais e mais interessante com o passar do tempo. Novos detalhes surgem a cada revisita e, após a estreia de “Fragmentado” em 2017, essas revisitas tornam-se cada vez mais estimuladas.